Teoria Ineficaz: o Direito penal do autor aplicado ao Código de Processo Penal
- Criado em 14/02/2022 Por Wellington Lima
O direito penal, conforme Guilherme Nucci (2020, p. 74), pode ser conceituado como o conjunto de normas jurídicas que estabelecem os limites do poder punitivo do Estado, enquanto ciência jurídica, instituindo os tipos penais e suas respectivas sanções correspondentes, além de suas regras de aplicação.
Entre as diversas tentativas de criação de determinado modelo jurídico perfeito, foi elaborado o chamado direito penal do inimigo, o qual teve grande exposição na Alemanha.
Nucci discorreu sobre o tema afirmando que trata-se de modelo de direito penal, cuja finalidade é detectar e separar, dentre os cidadãos, aqueles que devem ser considerados os inimigos (terroristas, autores de crimes sexuais violentos, criminosos organizados, dentre outros).
Logo, tal ideologia criminal tem como fundamento a punição do agente por circunstâncias pessoais do possível autor, tratando-se da total desconsideração do fato criminoso, levando em consideração características personalíssimas como raça, escolaridade, condenações passadas ou outras características inerentes do indivíduo como pessoa, e não com o fato delituoso que deveria ser objeto da ação estatal.
O doutrinador Günther Jakobs (2007, p.67) esclarece que o direito penal do inimigo pode ser caracterizado por três elementos: em primeiro lugar, vislumbra-se um amplo aditamento da punibilidade, isto é, a perspectiva do ordenamento jurídico é prospectiva (com o ponto de referência: o fato futuro), no lugar de – como é o habitual – retrospectiva (ponto de referência: o fato cometido).
O segundo elemento elencado por Jakobs é a desproporcionalidade das penais, as quais são excessivamente altas, especialmente, a antecipação da barreira de punição não é considerada para reduzir, correspondentemente, a pena cominada.
Sobre a última característica basilar levantada pelo doutrinador alemão, o direito penal do autor relaciona-se estritamente com a relativização de garantias processuais, as quais por vezes são suprimidas, sendo inaplicáveis os preceitos legais e até mesmo constitucionais, perfazendo assim, o caráter inquisitório do direito penal.
Tais fundamentos caracterizariam a aplicação do direito punitivo ao cidadão que delinquiu, segundo Wermuth (2015, p.24), o inimigo torna-se aquele que se afasta do ordenamento jurídico de forma permanente, não oferecendo nenhuma garantia de fidelidade à norma, uma vez caracterizada a habitualidade em delinquir dos indivíduos considerados “inimigos” do Estado.
Para Wermuth, o papel do direito penal do autor não é compensar o dano causado à vigência de uma norma, mas sim eliminar o “perigo” representado pelos indivíduos (não considerados como cidadãos) que se encontram fora da ordem social estabelecida.
O jurista Eugênio Raul Zaffaroni (2005), em sua famosa obra Em torno de la cuestion penal, esclareceu qual é a real necessidade do Estado em estabelecer “inimigos”.
No menos notorio es que los estereotipos de quienes son mostrados como enemigos de la sociedad corresponden a todos los excluidos del actual momento de poder planetario (conocido como globalización) y que se concentran según grupos que resultan molestos en diferentes localizaciones geográficas (inmigrantes en países desarrollados o menos subdesarrollados; desocupados o contestatarios en los países pobres; desplazados económicos, políticos o bélicos; los extraños; etc.). (ZAFFARONI, 2005, p.156)
A utilização do direito penal do inimigo como teoria criminológica, conforme expõe Zaffaroni, torna quase impossível a reconciliação do agente que pratica o ato ilícito, tendo em vista que esse é tratado como inimigo de toda sociedade.
O contraponto do direito penal do autor, ou “Estado de polícia”, é o chamado direito penal do fato, também denominado de “Estado de direito” por Zaffaroni, sendo característica principal deste, a responsabilização do infrator enquanto pessoa de direito, se opondo ao tratamento do autor como inimigo do Estado e da sociedade.
De igual modo, segundo André Estefam (2020):
[...] o Direito Penal do Inimigo jamais se compatibilizaria comum Estado Democrático de Direito, pois funda sua atuação na pessoa, e não no fato. Pune um indivíduo muito mais por suas características pessoais (periculosidade) e menos pelos atos concretamente praticados. Constituiria, portanto, um resgate do superado modelo de Direito Penal do Autor, muito utilizado na primeira metade do século XX. (ESTEFAM, 2020, p. 248)
É certo que o direito penal do autor é totalmente inconstitucional, à luz da Constituição Federal de 1988, assim entende André Estefam, o qual explica que o direito penal do inimigo constitui-se como uma legislação de exceção, fundado em normas específicas, as quais visam o combate do “inimigo” e sua eliminação.
Não há do que se admitir a existência no ordenamento jurídico moderno qualquer dispositivo que denegue direitos, em virtude de condições de caráter pessoal do autor e que em nada se relacionam com o fato típico praticado pelo agente.
Ademais, o discurso elaborado no bojo da teorização do Direito Penal do inimigo conduz à configuração de um modelo de Direito Penal do autor, em que não está em jogo a proteção de bens jurídicos, mas sim a persecução de determinadas pessoas em função da sua condição pessoal, de sua “maldade” intrínseca e isto configura um retrocesso inadmissível (WERMUTH, 2015, p.28).
Nesse sentido, a inovação trazida pela lei 13.964/19, que possibilita ao magistrado a decretação, de ofício, da prisão cautelar de qualquer indivíduo que satisfaça os requisitos objetivos do art. 310, §2º do Código de processo penal, é a institucionalização do direito penal do inimigo.
O jurista Renato Brasileiro de Lima (2020) expôs em sua obra sobre o tema as controvérsias da prática desta teoria:
[...] Considerando-se que, desde a vigência da Lei n. 12.403/11, o flagrante, por si só, não mais justifica a manutenção do flagranteado sob custódia, dada a sua natureza de medida pré-cautelar, poderia a lei ordinária vedar, de maneira peremptória, a concessão da liberdade provisória, com ou sem fiança, como fez no §2º do art. 310 do CPP? Pode o legislador ordinário, independentemente de verificação pelo Poder Judiciário da necessidade de manutenção da prisão cautelar à luz das hipóteses que autorizam a prisão preventiva (CPP, arts. 312 e 313), ou temporária (Lei n. 7.960/89, art. 1º, incisos I, II e III), estabelecer, de formar genérica e absoluta, que determinado delito é insuscetível de liberdade provisória, estabelecendo verdadeira prisão cautelar ex lege para aquele que fora preso em flagrante? (LIMA, 2020, p. 307).
É certo que a existência de dispositivos assumidamente alinhados com a teoria do direito penal do inimigo é totalmente contrária aos direitos e princípios constitucionais conquistados ao logo das décadas, caracterizando-se como manifestadamente ilegais quaisquer decisões judiciais baseadas nessas regras ilegais.
Embora seja evidente a superação do direito penal do autor pela Constituição Pátria, resta claro que a legislação supracitada trata-se de retrocesso legislativo gravíssimo, causando danos irreparáveis a cada dia que permanece sendo a fundamentação para segregações cautelares pelo país.
Referências:
ESTEFAM, André; RIOS, Victor Eduardo. Direito Penal Esquematizado – 9. Ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.
JAKOBS, Günther. Direito Penal do Inimigo: Noções Críticas. Org. e trad. André Luís Callegari, Nereu José Giacomolli – 2. Ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.
LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único – 8. Ed. re., ampl. e atual. Salvador: Ed. JusPodivm, 2020.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal – 16. Ed. Rio de Janeiro: Forensse, 2020.
WERMUTH, Maiquel Dezordi. Cultura do medo e criminalização seletiva no Brasil. Kindle Unlimited, 2015.
ZAFFARONI, Eugênio Raul. Em Torno de la Cuestion Penal. Montevideo-Buenos Aires: Editorial BdeF, 2005.
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