Inquérito policial e o direito de defesa
- Criado em 14/01/2022 Por Wellington Lima
Segundo Santos (2016, p.23) “a palavra inquérito, do latim quaerere, inquirere, remonta à ideia de se questionar, perguntar, procurar, pesquisar, interrogar, inquerir, indagar algo ou alguém, a fim de esclarecer fatos desconhecidos pelo inquisidor ou reprimir determinadas condutas”.
Nesse sentido, o inquérito policial é considerado um procedimento administrativo e investigatório, de caráter dispensável, que tem por finalidade a apuração de um fato definido como crime, visando identificar indícios de autoria e provas da materialidade do delito para que o Parquet possa ingressar com uma ação penal (BEZERRO E SOUZA, 2015).
Assim, é imperioso destacar as origens e finalidades do inquérito, entendendo sua relevância para toda sociedade em geral, já que diariamente delitos acontecem por todo o território nacional, sendo dever do Estado investigar cada infração a qual tenha conhecimento, não podendo escusar-se de cumprir seu papel positivado em lei.
Praticado O fato criminoso, surge para o Estado o jus puniendi, que o faz por meio de um processo constitucionalmente democrático, cuja atuação se desenvolve em momentos distintos, mas igualmente importantes, o primeiro trata-se da investigação criminal stricto sensu (inquérito policial) e o segundo momento, a ação judicial (SANTOS, 2016).
Entretanto, é cabível esclarecer que embora seja instrumento investigatório de suma importância para propositura da ação penal pelo Parquet, o inquérito policial é dispensável, podendo ser suprido por outros meios investigatórios e probatórios, não se restando imprescindível.
1. INQUÉRITO POLICIAL COMO INSTRUMENTO
Devido seu caráter investigativo, primeiro se instaura o inquérito policial inquisitivo, sem alcance de todas as garantias processuais constitucionais, e em seguida o órgão ministerial, subsidiado por uma reunião de elementos indiciários que o levam a uma justa causa, promove o ajuizamento da respectiva ação penal que obedecerá à ampla defesa e ao contraditório (SANTOS, 2016, p. 21).
Como já aventado, é sabido que a fase do inquérito policial por si, não apresenta caráter de imprescritibilidade, podendo ser dispensado quando não for necessário, no entanto, de forma errônea, muitos aplicadores do direito confundem a dispensabilidade do inquérito policial com uma suposta “dispensabilidade” dos direitos fundamentais dos investigados e até mesmo dos patronos destes.
É forçoso reconhecer que a fase investigatória inicial é de suma importância para a persecução penal, qualquer desvio da verdade ou entendimento errôneo da autoridade investigadora pode acarretar violações de direitos incomensuráveis.
Depreende-se que o inquérito policial, enquanto fase preparatória para a deflagração da ação penal, constitui um importante instrumento preliminar que está inserido no conceito de persecução penal, onde sua proposta primeva é a coleta de elementos indiciários para a apuração dos fatos criminosos com as circunstâncias materiais, bem como a autoria. Se realiza por meio de confecção de perícias técnicas, oitiva dos envolvidos, reconstituição simulada do crime, dentre várias outras diligências da praxe policial. (SANTOS, 2016, p. 8)
Ao discorrer pelo prisma dos inúmeros erros judiciária gravíssimos cometidos desde o início da fase investigatória, percebe-se o quão importante a investigação policial é, já que nessa fase qualquer informação errada pode prejudicar todo o processo, fazendo-se necessário então que a autoridade policial não faça juízo de valor dos fatos, mas sim elucide como ocorreu o ilícito (AGUIAR e NASCIMENTO, 2020).
Ao analisar a importância da investigação policial de forma correta, TALON (2020) discorreu que:
A fase da investigação preliminar tem um impacto considerável no futuro processo penal, haja vista que seus resultados serão utilizados como fundamentos do arquivamento do inquérito ou para o oferecimento e o recebimento da peça acusatória. Não raramente, durante a investigação, também são aplicadas medidas cautelares pessoais (inclusive a pior delas: a prisão preventiva) e reais, bem como produzidas provas irrepetíveis. (TALON, 2020)
Assim, o inquérito policial não pode ser desprezado por sua mera disponibilidade, já que possui alta relevância para a instauração da ação penal, de tal modo, é igualmente relevante para os envolvidos na investigação, uma plena atuação defensiva, sem desrespeito aos princípios constitucionais inerentes à advocacia.
2. FALHAS NO INQUÉRITO POLICIAL INQUISITIVO
É sabido que o Estado necessita de um instrumento no qual possa embasar com indícios mínimos a abertura da ação penal. Neste prisma, nota-se que o inquérito tem como finalidade imediata a colheita de elementos informativos para sustentar a justa causa da ação penal e, de modo secundário, servir de norte para o órgão acusatório quando este estiver já em fase processual, o qual poderá confirmar todas as informações inquisitivas na instrução probatória judicial (SANTOS, 2016, p. 24).
Devido seu caráter inquisitório, muitos doutrinadores e agentes públicos excluem da fase investigatória princípios inerentes à defesa, posicionamento totalmente equivocado conforme explica Pereira (2019):
Sendo o procedimento inquisitorial, parte-se da premissa que inexiste direito à defesa no inquérito policial. Tal assertiva mostra-se equivocada ao menos em parte. É certo que por não haver acusação formal ou mesmo relação processual instaurada, não há a efetiva citação do suspeito. Em verdade, enquanto não advir o ato de indiciamento, não há de se falar em pretensão de defesa, pois carece de indicativo de autoria. Contudo, a partir do ato de indiciamento por parte do Delegado de Polícia, ato através do qual o Estado formalmente aponta o suspeito do crime, surge ao indiciado uma gama de possibilidades de exercício de defesa, seja exercício endógeno do direito de defesa, seja o exercício exógeno do direito de defesa. (PEREIRA, 2019, p. 13)
Logo, é totalmente plausível afirmar que o direito de defesa no inquérito policial não apenas existe, mas é essencial para o bom andamento da investigação judiciária, tendo em vista que o investigado pode tornar-se réu em qualquer tempo. Em uma análise mais profunda sobre o tema é possível verificar o quão grave é a supressão de direitos constitucionais inerentes ao investigado; é corriqueiro no Brasil investigações mal feitas, com andamento negligente, buscando apenas um culpado para o crime, um indivíduo a ser levado às câmeras dos programas de televisão, mostrando que o “trabalho” está feito e a população segura.
Não é aceitável banalizar a investigação criminal, tampouco ser negligente na produção de provas que, embora sejam pré-processuais, são o seguro fundamento de decretações de prisões cautelares, mesmo que o Parquet ainda não tenha oferecido denúncia em desfavor do indiciado/preso, como é comum no Brasil.
O grande problema não é a negligência policial, que em muitos casos acontece por excesso de trabalho, falta de pessoal ou qualquer outro motivo que justifique os elevados números de indiciados levados à justiça sem qualquer indício real de autoria. A verdadeira barreira está na construção das provas, sendo estes os motivos da instauração de uma investigação, colher indícios probatórios de autoria e materialidade.
Há quem alegue que pela investigação policial não ser uma ação penal, não se faz necessário que a Defesa do indiciado atue auxiliando na produção de provas para formar a opinio delicti. No entanto, esse posicionamento não merece ser acolhido de forma plena.
As provas produzidas na fase do inquérito, segundo a doutrina, não tem o condão de influenciar no convencimento do juiz no momento de proferir a sentença condenatória. Com efeito, todas elas deverão ser repetidas na fase processual, sobre o crivo do contraditório e da ampla defesa, para que possam servir de fundamento para uma eventual condenação (BEZERRO e SOUZA, 2015, p. 2).
Ao perceber que as provas deverão sempre ser repetidas na fase processual, é possível concluir que há necessidade de uma atuação maior da defesa na fase inquisitorial, uma vez que o indiciamento de certo indivíduo estará calcado em fundamentos sólidos, produzidos sob o crivo dos direitos constitucionais garantidos ao indiciado.
Outro grande problema vem à tona quando é lembrado que na maioria dos casos em que há decretação da prisão preventiva ou temporária, estas se dão na fase inicial de investigação. Logo, como é possível subjugar a liberdade, um dos maiores bens do ser humano, e ao mesmo tempo não reconhecer a atuação defensiva na fase inquisitorial?
Sobre o aspecto das prisões cautelares Talon (2020) explana que:
No que tange às medidas cautelares, há uma previsão legal – recentemente melhorada pela Lei Anticrime – no art. 282, § 3º, do CPP, que é pouco conhecida e diuturnamente desrespeitada/manipulada. Trata-se da previsão de que, como regra, existe contraditório prévio em relação à decretação de medidas cautelares:
Art. 282, § 3º, do CPP: Ressalvados os casos de urgência ou de perigo de ineficácia da medida, o juiz, ao receber o pedido de medida cautelar, determinará a intimação da parte contrária, para se manifestar no prazo de 5 (cinco) dias, acompanhada de cópia do requerimento e das peças necessárias, permanecendo os autos em juízo, e os casos de urgência ou de perigo deverão ser justificados e fundamentados em decisão que contenha elementos do caso concreto que justifiquem essa medida excepcional.
É noticiado frequentemente na mídia casos em que indivíduos perderam sua liberdade, ainda na fase investigatória, decorrente de uma investigação policial falha, sem nexo, ignorando os fatos trazidos pela defesa do indiciado.
Infelizmente no Brasil prende-se de forma banal, pouco importando a verdade dos fatos, que em muitos casos é exaustivamente apresentada pela defesa aos delegados de polícia, contudo, sem receber o mínimo de crédito. Tornou-se recorrente para advogados criminalistas ouvir da autoridade judiciária a infame e infeliz frase “As investigações já terminaram doutor, se resolva com o juiz”. A Constituição Federal perece diariamente nos distritos policiais por todo o país.
Para evidenciar a necessidade da atuação defensiva no inquérito policial basta perceber o tratamento desigual acerca das diligências investigatórias, inerentes ao inquérito e essenciais para obtenção de indícios mínimos de autoria e materialidade. Enquanto o Ministério Público pode simplesmente requisitar informações ou documentos, a defesa não tem o mesmo poder, precisando “solicitar” e, em caso de indeferimento, deverá requerer ao Magistrado, que não raramente também indeferirá o pedido, afirmando que se trata de medida protelatória ou impertinente. Às vezes, a defesa é intimada para informar o que pretende provar com tal diligência, algo teratológico que produz a necessidade de antecipar nos autos a estratégia defensiva (TALON, 2020).
3. DEFESA E PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS
Instituir o contraditório no inquérito policial não significa, necessariamente, adiantar uma audiência ou coisa parecida, mas sim, dar ao investigado a oportunidade de tentar demonstrar que ele não é o autor dos fatos ou, se o for, expor as razões pelas quais o fez, já que diante da possibilidade de ser amparado pela legítima defesa ou outra excludente de ilicitude, pode haver sua absolvição sumária e até a consequente extinção do processo (SANTOS, 2016, p. 35).
Há ainda um entendimento doutrinário totalmente falho, no sentido de que o inquérito se destina apenas ao Parquet, o que não é verdadeiro, uma vez que deve ser analisado levando em consideração o Princípio basilar da dignidade humana, onde a investigação tem que ser revelada a todas as partes, principalmente a mais interessada, qual seja, o indiciado que pode ser atingido diretamente pelo seu resultado, como explicado por AGUIAR e NASCIMENTO (2020).
Seguindo o mesmo pensamento, TALON (2020) disserta que “O Ministério Público exerce o controle externo da atividade policial (art. 129, VII, da Constituição Federal). Ainda que o Delegado tenha boa-fé na condução do inquérito, é evidente que essa atribuição do Ministério Público pode influenciar a forma de investigar, adotando linhas que favoreçam os interesses do ‘Parquet’”.
Dado a total parcialidade do inquérito policial, é imperioso o reconhecimento dos direitos fundamentais da defesa e do indiciado, uma vez que desde a fase policial devem ser assegurados ao investigado os direitos constitucionais básicos (SANTOS, 2016, p. 36).
4. A INVESTIGAÇÃO CRIMINAL DEFENSIVA
A investigação defensiva se presta a evitar a instauração de ação penal infundada, face as constantes acusações que possuem um viés político-criminal de combate à violência a qualquer custo (SANTOS, 2016, p. 44).
Sobre o tema Talon (2020) conclui que “sem a investigação criminal defensiva, o Advogado dependeria sempre da concordância da autoridade policial para realizar as diligências no inquérito policial, o que, conforme a parte final do art. 14 do CPP (“será realizada, ou não, a juízo da autoridade”), não seria tão fácil. Aliás, na prática, é comum o indeferimento desses requerimentos”.
Por outro lado, o membro do Ministério Público pode simplesmente requisitar o cumprimento de alguma diligência ou até instaurar uma investigação direta, procedimento já autorizado pelo STF (RE 593.727). Trata-se de uma nítida falta de paridade de armas (TALON, 2020).
No mesmo sentido, também é constantemente violado o direito previsto no art. 7º, XXI, do Estatuto da OAB, que consiste em assistir aos clientes investigados durante a apuração de infrações, sob pena de nulidade absoluta do respectivo interrogatório ou depoimento, podendo apresentar razões e quesitos. Muitos desses problemas decorrem da equivocada ideia de que há uma rivalidade entre a autoridade policial e o Advogado Criminalista ou que este estaria em busca da impunidade. Desconsidera-se, infelizmente, o fato de que o Advogado é indispensável à administração da justiça (art. 133 da Constituição Federal) (TALON, 2020).
A investigação criminal defensiva torna-se meio extremamente eficaz para que o advogado possa produzir provas antes da ação penal, anexando as mesmas ao processo em âmbito judiciário quando este for iniciado.
Embora seja de grande importância para à defesa, infelizmente grande parte da advocacia, em especial os advogados sem experiência considerável de carreira, desconhecem o instrumento da investigação criminal defensiva ou não tratam com a devida importância este meio capaz de equilibrar a balança das armas, já que o Ministério Público pode requisitar em qualquer tempo da autoridade policial a realização de diligências para produção de suas provas antes de iniciado o processo judicial.
Logo, em meio ao caos que é o sistema acusatório brasileiro, a investigação defensiva tornou-se o único meio do indiciado, por meio de seu representante, poder exercer o tão sonhado direito de defesa, já que corriqueiramente lhe é furtado ao entrar pelas portas da delegacia.
5. CONCLUSÃO
Portanto, é necessário não apenas o reconhecimento do direito de defesa, este já estampado, mesmo que timidamente, na súmula vinculante 14 do Supremo Tribunal Federal, mas também a sua aplicação prática no decorrer das inúmeras investigações policial pelo Brasil.
Aos advogados criminalistas, resta lutar pelo exercício da defesa, tendo em vista que desconsiderar a importância do inquérito policial, deixando as investigações nas mãos da autoridade policial, é um grande equívoco estratégico para a defesa (TALON, 2020).
Negar ou diminuir o direito de defesa em qualquer ato que possa oferecer risco à algum indivíduo (em especial os que podem restringir sua liberdade) é silenciar a carta magna, se insurgir contra preceitos de direitos humanos reconhecidos internacionalmente, é banalizar a justiça desde a fase mais precoce até a última instância da suprema casa constitucional. O Brasil não pode se tornar o país aonde tudo é banal.
REFERÊNCIAS
AGUIAR, Vinicius Novais de; NASCIMENTO, Gustavo Henrique Coimbra do. Contraditório e ampla defesa no Inquérito Policial. Uberaba: Boletim Jurídico. Disponível em: <https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-penal/4620/contraditorio-ampla-defesa-inquerito-p.... publicado em 11 nov. 2019. Acessado em 11 de ago. de 2020.
BEZERRO, Eduardo Buzetti Eustachio; SOUZA, Caio Cezar Mareco de. O valor probatório do inquérito policial. Presidente Prudente: Colloquium Humanarum, vol. 12, n. Especial, 2015.
PEREIRA, André Luiz Bermudez. O devido processo legal substancial e sua aplicação ao inquérito policial. Santa Catarina: Unisul de Fato e de Direito: revista jurídica da Universidade do Sul de Santa Catarina, 2019.
SANTOS, Tiago Gregório de Vieira. A ampla defesa e o contraditório aplicados ao inquérito policial: um olhar comparativo luso-brasileiro. Porto: Universidade Fernando pessoa, 2016.
TALON, Evinis. Os problemas do inquérito policial. Disponível em: <https://evinistalon.com/os-problemas-do-inquerito-policial/>. publicado em: 05 de Ago. de 2020, acessado em 10 de Ago. de 2020.
TALON, Evinis. Os problemas da (falta de) participação da defesa na persecução penal. Disponível em: < https://evinistalon.com/os-problemas-da-falta-de-participacao-da-defesa-na-persecucao-penal/>. publicado em: 12 de Ago. de 2020, acessado em 13 de Ago. de 2020.
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