A cultura do “Cancelamento virtual” e o Direito brasileiro: A Internet é mesmo terra de ninguém?
- Criado em 14/01/2022 Por Wellington Lima
O que é o cancelamento virtual?
O “cancelamento virtual” ocorre quando determinado indivíduo ativo expõe ou tem exposto na internet algum posicionamento ou atitude que revolta algum grupo específico de pessoas, ou em casos extremos, a grande maioria de internautas, gerando assim uma reprovação virtual em dimensões gigantescas.
O sujeito ativo de tal prática geralmente é um certo número de pessoas que constituem determinado grupo social, os quais censuram o sujeito passivo, pessoa ou pequeno grupo de pessoas que se posicionam de forma “errada” sob o ponto de vista da maioria.
É certo que a democracia se baseia em princípios como a liberdade de expressão, no entanto, se o próprio direito à vida não é absoluto, não pode ser admitido qualquer tentativa de destruição da honra e dos direitos fundamentais de algum indivíduo ou grupo social em nome da liberdade de expressão.
Liberdade de expressão ou ataques pessoais?
A Liberdade de Expressão pode ser conceituada como o direito que cada indivíduo possui para expressar seus pensamentos e opiniões sem medo de sofrer retaliações.
Segundo a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948):
artigo 19º Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, este direito implica a liberdade de manter as suas próprias opiniões sem interferência e de procurar, receber e difundir informações e ideias por qualquer meio de expressão independentemente das fronteiras.
Conforme parágrafo 2º do artigo 220 da Constituição Federal (1988) “É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.”
Assim, extrai-se dos textos legais a importância das opiniões pessoais para uma democracia saudável.
No entanto, o problema começa a tomar forma quando tais opiniões pessoais começam a ferir direitos de outros indivíduos. Não há qualquer “cartilha para dar opiniões”, na verdade, pensar em tal hipótese chega a ser ridículo, porém, a forma em que algumas opiniões ou posicionamentos são externados na internet podem se tornar atitudes gravíssimas.
Nesse sentido, Luziane Leal (Crimes contra os direitos da personalidade na internet: violações e reparações de direitos fundamentais nas redes sociais; p. 153, 2015) discorre que
“Os limites à liberdade de expressão do pensamento são avistados quando se confrontam com outros bens jurídicos, também assegurados, como o direito à honra e a imagem, notadamente os direitos da personalidade.”
Em um mundo tão diferente para cada indivíduo, é certo que nenhum ser humano é obrigado a gostar de todos os posicionamentos de todos os indivíduos a sua volta, pelo contrário, tal tentativa beira a hipocrisia; no entanto, há diversas formas de demonstrar seu descontentamento acerca de outro usuário da rede, sem ultrapassar a linha do aceitável.
Expressar descontentamento com alguma figura pública é totalmente aceitável, porém, quando tal ação passa a ser uma campanha para patrocinadores, apoiadores e demais apoiadores abandonem tal figura pública o problema começa a tomar proporções maiores, chegando em níveis altamente reprováveis e até mesmo configurando crimes “consagrados” no código penal como a ameaça (Art. 147 do Código Penal).
Logo, “cancelar” alguém quando tal atitude satisfaz todos os elementos objetivos e subjetivos dos tipos penais pode ser atitude não apenas reprovável, mas criminosa.
Papel do Estado contra os crimes cometidos na web
Em 2014 o Brasil passou a ter uma legislação base para as interações na internet, embora precária, a lei 12.965/14 também chamada de “marco civil da internet” estabeleceu premissas básicas para os usuários da rede.
Mesmo com a legislação inicial da lei 12.965/14 e o enquadramento de diversos crimes descritos no código penal pátrio, o linchamento público de reputação e honra de usuários segue normalmente todos os dias, o que evidencia a ineficiência dos dispositivos já mencionados e a necessidade da evolução legislativa acerca do tema.
Não se busca qualquer tipo de censura, pelo contrário, se o usuário opta por usar seu direito de livre expressão para atacar direito de outrem, que assim o faça. O Estado não deve conter cada comentário ou publicação, porém, deve responsabilizar civil e criminalmente todos os excessos cometidos pelos propagadores do “cancelamento”.
Responsabilizar os excessos não é censurar, se o indivíduo deseja cometer o ilícito, que o faça e responda por seus atos, porém sempre pelos excessos estabelecidos em lei e jamais pela censura total de seu pensamento.
Embora aparentemente seja contraditório para quem não conhece a legislação a fundo, o próprio judiciário confunde a responsabilidade civil/criminal com censura, o que dizer de inquéritos abertos por “excelências” para investigar/censurar opiniões contrárias a essas mesmas "excelências"?
Por fim, é necessário que a legislação penal brasileira evolua com os avanços tecnológicos, regulando o chamado “cancelamento virtual” em seus excessos, responsabilizando civil e criminalmente tais indivíduos que ultrapassam a barreira da liberdade de expressão, porém, nunca censurando por completo (atacando um mal com outro mal ainda pior) como se tornou costume para certas “excelências” residentes em Brasília.
Assim, vamos esperar que este artigo não seja “cancelado” pela internet.
Ou censurado pelo supremo.
Referências
BRASIL. Código Penal. Decreto lei nº 2.848, de 07 de Dez. de 1940. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acessado em: 08 de Fev. de 2020.
BRASIL. Constituição da Republica Federativa do Brasil. Promulgada em: 05 de Out. de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acessado em: 08 de Fev. de 2020.
BRASIL. Lei nº 12.965, de 23 de Abr, de 2014. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12965.htm. Acessado em: 08 de Fev. de 2020.
LEAL, Luziane de Figueiredo Simão. Crimes contra os direitos da personalidade na internet: violações e reparações de direitos fundamentais nas redes sociais. Curitiba: Juruá, 2015.
UNICEF. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Proclamada em: 10 de Dez. de 1948. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos. Acessada em: 08 de Fev. de 2020.
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