Audiência de custódia: A nulidade legalizada pelo Código de Processo Penal
- Criado em 13/04/2022 Por Wellington Lima
A decretação de qualquer prisão cautelar, sem a existência de julgamento prévio, ofende o sentimento comum de justiça, tornando-se um ato de força estatal e de arbítrio, Luigi Ferrajoli (2002, p.446), trata a prisão preventiva como um produto da concepção inquisitória de processo, a qual torna-se instrumento para colocar o acusado em posição de inferioridade em relação à acusação.
Conforme leciona Renato Brasileiro (2020, p.309), tal pensamento inquisitório encontra refúgio no parágrafo segundo do artigo 310 do código de processo penal, o qual tem constitucionalidade duvidosa, tendo em vista que a denegação da liberdade provisória nas hipóteses do dispositivo mencionado.
Art. 310. Após receber o auto de prisão em flagrante, no prazo máximo de até 24 (vinte e quatro) horas após a realização da prisão, o juiz deverá promover audiência de custódia com a presença do acusado, seu advogado constituído ou membro da Defensoria Pública e o membro do Ministério Público, e, nessa audiência, o juiz deverá, fundamentadamente:
[...]
§ 2º Se o juiz verificar que o agente é reincidente ou que integra organização criminosa armada ou milícia, ou que porta arma de fogo de uso restrito, deverá denegar a liberdade provisória, com ou sem medidas cautelares.
O magistrado, regido pelo art. 310, só pode tomar três decisões, devidamente fundamentadas, na audiência de custódia, sendo elas: O relaxamento da prisão, quando houver alguma ilegalidade no procedimento do auto de prisão em flagrante; a conversão do flagrante em prisão preventiva, quando presentes os requisitos e pressupostos fundamentais para segregação cautelar do indivíduo, e por fim, a concessão da liberdade provisória, quando não restar comprovado os requisitos para a segregação cautelar.
Percebe-se que o mencionado dispositivo é evidentemente inconstitucional, uma vez que ao considerar posicionamento diverso, restaria institucionalizada, no ordenamento jurídico pátrio, a chamada “prisão obrigatória” (FACCHI JUNIOR, 2020), uma vez que ausentes os requisitos necessários para a conversão do flagrante em prisão preventiva, o acusado ainda teria sua liberdade suprimida, em face de conduta praticada no passado, como o caso da reincidência.
A Constituição Federal estabelece que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, consagrando a presunção de inocência, um dos princípios basilares do Estado de Direito como garantia processual penal, visando à tutela da liberdade pessoal (MORAES, 2003, p. 102).
Logo, considerando o dispositivo constitucional, ao tornar aplicável o parágrafo segundo do art. 310 do código de processo penal, o legislador passa a ressuscitar uma prisão em flagrante que mantém o agente preso sem a decretação da prisão preventiva, ao vedar (de forma inconstitucional) a concessão de liberdade provisória, quando o agente é reincidente, integra organização armada ou milícia ou porta arma de fogo de uso restrito (LOPES JR, 2020, p. 937).
É certo que em um Estado democrático de direito não pode haver dispositivos que atuem como antecipação da pena, de igual modo, ao abordar a temática, o professor Aury Lopes Jr. esclarece que não pode haver conversão de ofício da prisão em flagrante em preventiva.
Em sua obra Direito Processual Penal, o autor lecionou que:
É imprescindível que exista a representação da autoridade policial ou o requerimento do Ministério Público. A “conversão” do flagrante em preventiva equivale à decretação da prisão preventiva. Portanto, à luz das regras constitucionais do sistema acusatório (ne procedat iudex ex officio) e da imposição de imparcialidade do juiz (juiz ator = parcial), não lhe incumbe “prender de ofício”. (LOPES JR, 2020, p. 960)
Renato brasileiro complementa o mesmo entendimento, in vebis:
Destarte, deve o juiz se abster de promover atos de ofício, seja durante a fase investigatória, seja durante a fase processual. Afinal, graves prejuízos seriam causados à imparcialidade do magistrado se se admitisse que este pudesse decretar uma medida cautelar de natureza pessoal de ofício, sem provocação da parte ou do órgão com atribuições assim definidas em lei. (LIMA, 2020, p.946)
Logo, torna-se evidente que destoa completamente das funções do magistrado o exercício de qualquer atividade de ofício, caracterizando então uma colaboração à acusação (LIMA, 2020), tendo em vista que ao juiz não deve ser concedido a possibilidade de decretar medidas cautelares de ofício na fase investigatória, o que compromete a legalidade de todo direito processual.
Ao denegar a liberdade provisória com fundamento da reincidência, torna-se evidente a instauração do bis in idem, tema explanado pelo doutor Aury Lopes Jr. em sua obra processual penal.
Ainda deve ser levado em consideração que se trata de prisão em flagrante, sendo que na maioria dos casos é praticamente inviável ter qualquer prova suficiente de que o agente, por exemplo, é membro de alguma organização criminosa, para aplicação do dispositivo mencionado.
Criar-se-ia, então, um juízo prévio e abstrato de periculosidade, feito pelo legislador, retirando do Poder Judiciário o poder de tutela cautelar do processo e da jurisdição penal, que só pode ser realizado pelo magistrado a partir dos dados concretos de cada situação fática (LIMA, 2020, p. 308).
A aceitação de tal inconstitucionalidade gera incerteza no judiciário brasileiro, isso ocorre pois o STF já afirmou e reafirmou que é inconstitucional as regras como a constante na lei de drogas, mas também já o fez em relação a lei dos crimes hediondos e outras que vedam a concessão de liberdade provisória (LOPES JR., 2020, p.964).
Segundo a orientação do Supremo Tribunal Federal, vedações em abstrato à concessão da liberdade provisória contrariam a Constituição Federal, devendo o juiz sempre fundamentar a proibição aquilatando as circunstâncias do caso concreto (CUNHA, 2020, p. 249).
A inconstitucionalidade do dispositivo torna a inércia da corte maior conduta de extrema gravidade, afrontando o próprio dever institucional do STF em resguardar os mandamentos constitucionais. Mas, há quem pondere que o atual Supremo Tribunal Federal, em sua douta composição, está preocupado com assuntos mais pertinentes que a inconstitucionalidade das leis ou a garantia dos direitos constitucionais, afinal, que proveito há guardar aquilo que se é ignorado todos os dias ?
Referências:
BRASIL. Código de Processo Penal. Decreto-Lei nº 3.689, de 03.10.1941. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689compilado.htm> Acessado em 15 de Jul. de 2021.
CUNHA, Rogério Sanches. Pacote anticrime – Lei 13.964/2019: Comentários às alterações no CP, CPP e LEP. Salvador: Editora JusPodivm, 2020.
FACCHI JUNIOR, Edson Luiz. É inconstitucional a prisão obrigatória prevista no novo § 2º do art. 310, do CPP. Canal Ciências Criminais, 2020. Disponível em: < https://canalcienciascriminais.com.br/e-inconstitucionalaprisao-obrigatoria-prevista-no-novo-§2o-do-art-310/>. Acesso em: 18 de Mar. de 2021.
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. Trad. Ana Paula Zomer, Juarez Tavares, Fauzi Hassan Choukr, Luiz Flávio Gomes – 6. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais Ltda, 2002.
LIMA, Renato Brasileiro de. Pacote Anticrime: Comentários à Lei Nº 13.964/19 – Artigo por Artigo. Salvador: Editora JusPodivm, 2020.
LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal. – 17. Ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. – 13. Ed. São Paulo: Atlas, 2003.
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