O porquê do princípio da insiginificância não ser incentivo ao crime.
- Criado em 11/09/2018 Por João Ralph Gonçalves Castaldi
Escrevi um artigo explicando brevemente o que é o princípio da insignificância, ao final defendendo que não se trata de "aval judiciário" para o crime, como muitos imaginam.
Defendo que o princípio da insignificância mereça e espaço em nosso ordenamento jurídico por, resumidamente, três motivos:
1- Condiz com os princípios da Constituição Federal e da proporcionalidade;
Os fundamentos e objetivos da República estão explicitados no início da Constituição, para o presente texto, destaco os seguintes artigos:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
[...]II - a cidadania
III - a dignidade da pessoa humana;
[...]
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
[...]IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
[...]
Analisemos a ideia geral de justiça dos preceitos constitucionais sobre o prisma da proporcionalidade, afinal, é instrínseco ao ser humano retribuir o mal recebido proporcionalmente, geralmente na proporção de 100% ( apesar de costumeiramente observarmos "juros" na devolução do mal recebido), havendo inclusive a famosa passagem bíblica "olho por olho, dente por dente,[...]" (Êxodo 21:24,25)
Algumas (partes das) sociedades compreenderam que olho por olho e o mundo acabará cego¹ e começaram a investir em punições-vinganças alternativas (prisão e outros tipos de sanções), visando reprimir o comportamento nocivo ao mesmo tempo que reeduca o ofensor.
Tal evolução foi consequência de novas interpretações civilizadas ao "princípio da proporcionalidade intrínseco" ao ser humano, afinal, ora, o que é, por exemplo, cortar fora a mão de quem lhe tirou uma mão senão duplicar mal sofrido?
No Brasil podemos verificar esse "princípio da proporcionalidade intrínseco" aplicado na lei, especialmente no âmbito penal, afinal, as previsões legislativas são diretamente proporcionais às condutas do autor (prisão simples, detenções, reclusões, atenuantes, agravantes, excludentes, etc.), e não poderia ser diferente, pois, que seria mais razoável, moral, digno da pessoa humana e justo para uma república que julgar o indivíduo de acordo com suas condutas, sentenciando-o proporcionalmente?
Talvez a antipatia para com o princípio da insignificância se deva ao fato de muitos ignorarem que a justiça brasileira deve(ria) julgar, dentre outros fatores, principalmente o efeito da conduta.
Caso assim não fosse, seria impossível a convivência humana digna, eis que, sem o bom senso da proporcionalidade, todos estaríamos, em algum momento, praticando condutas delitivas, conforme explicação do próximo tópico.
2 - (Deveria) evita(r) absurdos jurídicos e desafoga(r) nosso judiciário para causas mais pertinentes ao interesse público;
O princípio da insignificância sempre existiu na humanidade, especialmente no âmbito penal, ainda que não mencionado expressamente.
Caso contrário estaríamos TODOS condenados, pois qualquer atividade humana causa alguma espécie de dano. Sem o princípio da insignificância, seriam crimes e/ou contravenções passíveis de punição:
- Brincar com estalinhos (de festa junina) ou semelhantes (art. 251, CP);
- Esbarrar em qualquer pessoa (art. 129, CP), afinal, no mais simples contato, amassar-se-ia os pêlos e/ou deformar-se-ia (ainda que brevíssimamente) a estrutura formada pela união das células da pele;
- Tropeçar, comer ou derramar qualquer coisa (mesmo em quantidades ínfimas) em via pública (arts. 37, LCP e 163, parágrafo único, III, CP), eis que parte (molecular) da saliva escapa para o ambiente externo, podendo sujar ou ofender (molecularmente) alguém, e ainda há a deterioração do patrimônio da União (em níveis microscópicos [ou não]);
- Transitar em qualquer parque considerado de preservação e/ou próximo a qualquer fauna ornamental (arts. 38, 40 e 49, Lei 9.605/98), vez que a movimentação traria moléculas nocivas da urbanidade (ou do próprio corpo), danificando a fauna (microscopicamente);
- Flatulência (art. 54, Lei 9.605/98 e, dependendo, arts. 14, II c/c 121, §2º, III, 252 e 253); etc.
Afinal, não deixam de se enquadrarem em condutas típicas e antijurídicas, e deixam de ser criminalizadas justamente pelos efeitos insignificantes das condutas. Repita-se que, sem o princípio da insignificância intrínseco ao bom senso, tão óbvio nessas situações, todos esses comportamentos e/ou situações seriam passíveis de ações penais.
Parece simples, não? Porém, o grande problema surge no âmbito patrimonial, eis que cada um atribui valores diferentes ao bem ou quantidade de dinheiro.
Para muitos indivíduos de nossa sociedade (e pior ainda, muitos operadores do direito), toda e qualquer conduta criminosa deve ser julgada numa equação: conduta criminosa = punição, especialmente no âmbito patrimonial, bastando a conduta típica, por si só, para condenar o indivíduo (de preferência com alguma barbaridade), ainda que não haja violência ou grave ameaça.
Por algum motivo misterioso, é cômica a ideia de que retirar uma ou seis folhas de uma árvore, pisar em 12 folhas de gramado ou mesmo poluir o ambiente com até 1L de gases corpóreos naturais poderiam ser considerados crimes sem o princípio da insignificância, porém a tentativa do furto de seis barras de chocolates (que totalizaram aproximadamente R$33,00) de um supermercado necessita chegar até o STJ para que seja declarada insignificante, e ainda, existe promotor insistindo na prisão de indivíduos que furtaram duas melancias.
Ou seja, fora do âmbito patrimonial, o efeito insignificante é óbvio, inclusive é cômica e absurda seria levar alguém encarcerado por estourar um "estalinho" na rua, porém, o efeito de tentar (repita-se, TENTAR) furtar R$33,00 em doces de um supermercado é razão suficiente para encarcerá-lo por 10 meses. Incompreensível.
Alguns alegarão que retirar a atipicidade da conduta é incentivar o meio de vida criminoso bem como que o legislador já previra o furto de pequeno valor no parágrafo 2º, do artigo 155, do CP, ou pensamento semelhante.
Sem adentrar no mérito do que seja "pequeno valor" e "insignificante", acredito que o Ministério Público tenha processos mais relevantes ao interesse público e não deveria investir esforços nessas insignificâncias, pois o órgão conta com o binômio muitas (MUITAS¹²³) demandas X escassa mão de obra, e outra, quanto tempo e dinheiro públicos foram gastos com esses dois casos? Não seria preferível que fossem investidos para reprimir condutas realmente reprováveis (por exemplo estupro ou latrocínio)?
Claro que é sempre necessário averiguar o impacto sofrido pela vítima do crime, afinal, valor insignificante para alguns pode significar muito para outros (por exemplo o furto de uma coberta de quem só possua uma coberta e a roupa do corpo), mas, a justiça deve absolver condutas delituosas que sejam realmente insignificantes.
AH, MAS AÍ ESTÁS DEFENDENDO O BANDIDO! QUER DIZER QUE DEVEMOS DEIXAR QUALQUER UM ENTRAR E PEGAR NOSSOS BENS "INSIGNIFICANTES"? CRIME COMPENSA NO BRASIL! VIVA AO PEQUENO CRIME! DÊ SEUS BENS PRA ELES ENTÃO!
Aplicar o princípio da insignificância não implica em necessariamente fazer vista grossa aos pequenos crimes, especialmente aqueles que estão "no limiar" da insignificância, mas tão somente, quando necessário, aplicar uma solução melhor, conforme o próximo tópico.
3- Contribui para a justiça e para que o direito penal seja, de fato, a ultima ratio;
Podemos não nos dar conta, mas em todos os ambientes civilizados utilizamos o princípio da proporcionalidade. Por exemplo, na Lei nº 8.906/94, conhecida como Estatuto da OAB, as sanções disciplinares aplicáveis aos advogados são: i) censura; ii) suspensão; iii) exclusão e; iv) multa.
Nessa lei. a medida é proporcional à conduta, pois, seria desproporcional aplicar exclusão ao advogado que, uma única vez, conversou diretamente com a parte adversa, e não com o patrono, afinal, o efeito desta conduta não causa revolta suficiente para a medida mais severa, contudo, cometer crime infamante é passível de exclusão, ainda que uma única vez.
De modo semelhante deve(ria) funcionar a aplicação da lei em geral, isto é, proporcionalmente à conduta do indivíduo, afinal, a Constituição Federal declara que a prisão deverá ser a exceção, e indiretamente, que o direito penal deve ser a ultima ratio. Sendo assim, por que restringir liberdade ou direitos do indivíduo sem observar o efeito de sua conduta? Por que utilizar a medida mais gravosa (direito penal) se é possível sanção igualmente pedagógica, porém menos gravosa?
Apesar de muitos tratarem as áreas cível e penal como antagônicas, há um fato ignorado pela população (impressionantemente, por muitos colegas civilistas): sem o dano/efeito suficiente para tipicidade material não existe o ilícito penal, CONTUDO EXISTE O ILÍCITO CIVIL, uma vez que a existência de um não afeta necessariamente o outro, ideia que podemos extrair do artigo 935, do CC.
Ora, quando uma ação ou omissão viola direito alheio, ainda que exclusivamente moral, cabe a obrigação de reparar o prejuízo, OU SEJA, se a conduta não é suficiente para ser configurada crime, mas causa prejuízo, está configurado ilícito civil. É justamente por conta disso que o direito penal deve(ria) ser sempre a ultima ratio (última razão, última medida).
Necessário compreender que a figura do "criminoso insignificante" está no limiar do ilícito civil, mas não chega a embarcar no âmbito penal, isto é, sua conduta é ilícita, mas não chega a ser criminosa ante a ausência de tipicidade material.
Assim, a prisão de um indivíduo que comete conduta delituosa insignificante é duplamente injusta, uma porque deveria ser incabível aplicar uma sanção de conduta criminosa à alguém que não passou do ilícito civil, e outra porque é desproporcional uma conduta insignificante encarcerar um indivíduo (que por exeomplo tentou furtar R$33,00 de um supermercado) juntamente com criminosos de verdade, ainda que aquele não seja primário. Parece ser necessário dizer o óbvio: é um ser humano.
MAS SE O BANDIDO TEM QUE FURTAR PRA VIVER, COMO É QUE VAI INDENIZAR?
O artigo 927, do CC, fala em obrigação de reparação de danos, não explicitando que deva ser exclusivamente indenização pecuniária. Mas, mesmo que fosse, nada impede auferir o valor do dano e quantas "obrigações de fazer" seriam necessárias para a reparação.
"Criminosos insignificantes" (como chamarei aqueles que praticam condutas que não preenchem a tipicidade material), na grande maioria das vezes, realiza tais condutas para subsistência, e, infelizmente, como a maioria da população carente, estão mais propensos às arbitrariedades dos muitos servidores públicos que o considerarão de antemão "bandido" antes mesmo de averiguarem os fatos.
Um criminoso insignificante reparando o dano causado à vítima é muito mais benéfico que encarcerado, pois reparando seu dano, não se distancia da sociedade, que poderá ouvir sua história e conceder chances para se estruturar.
Porém, em reclusão, não apenas deixará a vítima com seu dano irreparado, mas o "criminoso insignificante", endurecido pelo cárcera, muito provavelmente voltará à civilização como criminoso de verdade.
Claro, existem diversos tipos de pessoas, e talvez a "correção civil" não afaste o indivíduo de práticas reprováveis, mas R$33,00 de um supermercado jamais será a prevalência da lei e da justiça, pois no direito penal punimos a conduta, não o indivíduo, logo, não podemos punir criminalmente uma conduta que não preenche os requisitos para ser crime.
Deveríamos todos (especialmente operadores do direito) ter mais respeito para com as disposições e hierarquia das leis, principalmente com a constituição federal, sem buscar ou criar seletivamente interpretações de disposições penais para finalidades inconstitucionais. O direito penal NUNCA deve ser usado como a panacéia para as mazelas sociais, pois nunca as resolverá sozinho.
Poderia dizer o enorme abismo entre os menos favorecidos e a aplicação justa da lei, pois um indivíduo pego portando 130kg de maconha e várias munições de uso restrito é solto e vai para clínica médica pois supostamente sofre de doença psicótica que causa, principalmente, comportamentos impulsivos, enquanto outro foi preso primeiramente por portar desinfetantes e segundamente (supostamente) portando 0,6 g de maconha, 9,3 g de cocaína e um rojão.
Poderia informar que lavar quase R$750.000,00 de dinheiro sabidamente furtado do povo ou outros crimes semelhantes, uma única vez, é menos reprovável que furtar 19 ovos de páscoa, sete barras de chocolate, dois peitos de frango e quatro vidros de perfume, que somados não chegam a R$1.200,00 se já tiver um passado desfavorável.
Mas apenas uma mensagem é necessária: é a vida de um ser humano, será que vale a pena destruir (mais ainda) a vida de uma pessoa e transformá-la em criminoso/a de verdade por R$33,00? Por duas melancias?
¹A autoria é frequentemente atribuída a Mahatma Gandhi, apesar de não constar em quaisquer fontes. Todavia a família de Gandhi a considera uma citação autêntica. A citação é atribuída também a Louis Fischer, Henry Powell Spring e Martin Luther King.