É possível registrar ocorrência (fazer B.O.) em qualquer delegacia sim!
- Criado em 11/09/2018 Por João Ralph Gonçalves Castaldi
Infelizmente, recentemente li, ouvi e recebi diversas reclamações pertinentes ao tema, e decidi fazer esse artigo voltado tanto a título de informação quanto para eventuais debates e trocas de ideias.
Diversas pessoas, em inúmeros estados (e no próprio distrito federal), alegaram que não conseguiram registrar ocorrência em Delegacia de Policia - DP, e foram informadas de que só poderiam registrar ocorrência na delegacia X ou Y, por ser a mais próxima do(s) fato(s), e esse essa resposta, vinda de um servidor da segurança pública em serviço, é extremamente preocupante, principalmente por ser algo inadmissível.
Atualmente, vários estados e municípios possuem leis locais que asseguram, expressamente, "o direito de registrar ocorrência em qualquer delegacia" (no DF, por exemplo, há a Lei Distrital nº 6.000 de 31 de agosto de 2017), além disso, independente da existência de tais leis, não existe um único artigo em toda legislação federal que faça menção à tal "obrigação" ou possibilidade de imposição dessa exigência. Sequer existe algo sobre uma eventual discricionariedade de receber ou não a ocorrência nesse aspecto.
Somente este fato (falta de previsão legal) já torna tal exigência manifestamente ilegal!Parafraseando um polêmico deputado, atualmente presidenciável: é só respeitar (a lei e a constituição) e cabô! Cabô p***a!
Mas, por amor ao debate, vamos supor que, em uma forçada ginástica interpretativa, a exigência, de algum modo, exista alguma base "legal" (utilizando mais a imaginação que o direito para tanto). Vamos imaginar uma "legalidade extralegal" da medida... Já sei!
A medida seria plenamente razoável e legal tendo em vista o objetivo constitucional da solidariedade social para a construção de uma sociedade justa (art. 3º, da CF) combinado com o princípio da cooperação entre as partes (distorcendo flexibilizando o tal princípio do art. 6º, do CPC/15, claro), ao argumento de que tanto o/a comunicante/vítima quanto o estado possuem interesse na justa e efetiva investigação/apuração dos fatos, devendo cooperarem entre si para tanto. Por hora, embasemos a "legalidade" da medida nessa ginástica à la STF, pois é o argumento mais plausível para (ao menos discutir sobre) tal exigência manifestamente ilegal.
Assim sendo, "cooperarem entre si" poderia abranger certa distribuição do ônus da apuração/investigação do estado com o cidadão/vítima se enquadrar em "cooperação entre si", portanto, estaria "legitimada" a discricionariedade em receber a ocorrência do cidadão ou "mandá-lo" registrá-la na instituição mais próxima dos fatos, vez que, ao verificar os deveres da autoridade policial (especialmente nos incisos I, II e, talvez, o III, do artigo 6º, do Código de Processo Penal - CPP), há maior conveniência, para a(s) autoridade(s) policial/ais, de se registrar a ocorrência na delegacia mais próxima do(s) fato(s). É um argumento (não o mais) "plausível", e vamos supor que seja esse o "fundamento legítimo/legitimante" para que um servidor público impor tal condição.
Só que, feliz ou infelizmente, nem mesmo nesse cenário hipotético a exigência se sustentaria, vez que não haveria coerência.
Ora, ao se considerar como "fundamento legitimante" a conveniência da delegacia mais próxima dos fatos em isolá-lo (guardá-lo) e colher outras provas (I, II e, talvez, o III, do artigo 6º, do CPP), haveria conflito com os demais deveres, vez que, no mesmo sentido, seria mais conveniente para a delegacia mais próxima do ofendido ouví-lo (V, VIII, IX e X), bem como a mais próxima da vítima em ouví-la e determinar exames de corpo de delito (IV e VII), ou a mais próxima de testemunhas ouví-las (III e VI), e por aí vai.
Assim sendo, nem a conveniência da execução dos primeiros incisos, do artigo 6º, do CPP (que, repita-se, seria o fator mais plausível para se impor que o registro da ocorrência seja em delegacia diversa) seria argumento para tal exigência, vez que mostra-se altamente volátil. Inclusive, a mera ordem do cumprimento dos deveres já seria fator suficiente para que fizesse cair por terra qualquer solidez em tal exigência.
Ou seja, o melhor argumento para legitimar a exigência cai por terra, além disso, repita-se, a falta de previsão legal torna tal exigência manifestamente ilegal. Vale dizer, também, que, apesar de óbvio, é impossível tomar conveniências enrustidas como obrigações legais.
Aliás, vale salientar o fato de que, ironicamente, a leitura conjunta de quaisquer artigos legais pertinentes à investigação confirmam (ou, no mínimo, induzem fortemente)exatamente o oposto.
Ora, o art. 6º do CPP simplesmente diz "Logo que tiver conhecimento da prática da infração penal, a autoridade policial deverá:" e em seguida elenca os deveres da autoridade policial, não existindo qualquer menção sobre discricionariedade da delegacia mais próxima disso ou daquilo.
Além disso, outra lei extremamente pertinente fala exatamente o oposto de qualquer suposta "discricionariedade" na apuração de uma ocorrência. Nesse sentido os artigos 1º e 2º, §4º, da Lei 12.830/2013, abaixo copiados, com meus respectivos grifos:
Art. 1o Esta Lei dispõe sobre a investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia.
Art. 2o As funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais exercidas pelo delegado de polícia são de natureza jurídica, essenciais e exclusivas de Estado.
[...] § 4o O inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei em curso somente poderá ser avocado ou redistribuído por superior hierárquico , mediante despacho fundamentado, por motivo de interesse público ou nas hipóteses de inobservância dos procedimentos previstos em regulamento da corporação que prejudique a eficácia da investigação.
Ora, se é dever constitucional do estado reprimir quaisquer condutas nocivas à sociedade e proteger os bens jurídicos mais relevantes (preservar a ordem pública), se existem restrições justamente para a avocação ou redistribuição das peças investigatórias confeccionadas exclusivamente pela polícia judiciária, e se é incumbência privativa do delegado de polícia o indiciamento ou não do acusado, não existe qualquer coerência em se impor quaisquer restrições para a comunicação da ocorrência.
Além disso, há de se levar em conta o fato de que condutas relativas à comunicação falsa ou não verificada de infração penal configura ato criminoso, de iniciativa pública incondicionada.
Ou seja, a completa falta de restrição na comunicação da ocorrência e o dever do estado são (ou deveriam ser) tão aparentes que o uso indevido dos serviços policiais não é punido com meras multas ou advertências, mas sim com o direito penal!
Valendo ressaltar que este instituto é (ou deveria ser) a exceção das punições, sempre sendo a ultima ratio do estado para reprimir as ofensas mais gravosas aos bens jurídicos mais relevantes.
Assim sendo, ora, como e/ou por quê impor condições à comunicação do crime? Qual seria o interesse da sociedade em ver qualquer obstaculização do direito à investigação para a consequente reprimenda de ofensas aos bens jurídicos mais relevantes? Não existe qualquer justificativa.
Dito tudo isto, resta evidente que tal imposição é manifestamente ilegal, podendo, inclusive, configurar prevaricação (art. 319, do CP), afinal, quantos interesses pessoais podem existir em uma imposição ilegal? Na exigência objeto do artigo, o mais aparente é o de tentar minorar a quantidade de trabalho ao eximir-se do dever.
Para (tentar) exaurir o tema no âmbito legal, pode-se (precariamente) debater se haveria alguma plausibilidade na tal exigência quando existir crimes com manifesta competência exclusiva (por exemplo os de competência federal ou militar) ou quando alguma das partes está domiciliada em estado diverso.
Mesmo nesses casos a exigência continuaria a mostrar-se ilícita, pois, além da falta de previsão legal sobre restrição da comunicação de infrações penais, pois, conforme visto anteriormente, é possível a avocação ou redistribuição da peça investigatória, desde que fundamentada, sendo procedimento comum quando, no decorrer das investigações, nota-se que o crime é competência alheia (material ou territorial), e remete-se toda papelada para a delegacia competente, isso quando não resultar numa atuação conjunta de ambas ou várias instituições.
Nesse sentido, existem diversas legislações, cujo teores podem ser "resumidos" no art. 1º e 2º, da Lei nº 13.675, de 11 de junho de 2018 (atualmente em vigor). Com meus grifos, copio abaixo os artigos em ordem invertida, pois confere melhor sentido (aliás, o artigo 2º poderia ser muito bem um "preâmbulo" desta lei):
Art. 2º A segurança pública é dever do Estado e responsabilidade de todos, compreendendo a União, os Estados, o Distrito Federal e os Munícipios, no âmbito das competências e atribuições legais de cada um.
Art. 1º Esta Lei institui o Sistema Único de Segurança Pública (Susp) e cria a Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social (PNSPDS), com a finalidade de preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, por meio de atuação conjunta, coordenada, sistêmica e integrada dos órgãos de segurança pública e defesa social da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios , em articulação com a sociedade.
A parte "responsabilidade de todos" e "em articulação com a sociedade" poderia gerar alguma plausibilidade àquela ginástica interpretativa anterior, sobre a distribuição do ônus da segurança pública para com o cidadão, porém existe um vasto acervo de dispositivos dessa lei aptos extirparem qualquer sombra de dúvida quanto à completa ilegalidade de qualquer empecilhamento ao cidadão em comunicar sua ocorrência.
Ressalte-se que há um grande foco nas palavras "cooperação", "colaboração" e "integração"/"integrada" entre os órgãos de segurança pública, na mesma lei, chegando até a haver certas redundâncias. Particularmente penso que tal dúvida se extingue com as dicções do artigo 5º, especialmente com seu dispositivo mais direto, o inciso I:
Art. 5º São diretrizes da PNSPDS: I -atendimento imediato ao cidadão;
Por todo o exposto, resta em completa evidência, por quaisquer ângulos legalmente possíveis, a manifesta ilegalidade de tal exigência.
Cabe uma última discussão em paralelo ao aspecto legal, pois, todos sabemos que quase sempre há fortes dissonâncias entre o que diz a lei e sua eficácia no mundo fático, pois existem previsões legais que são impossíveis de serem cumpridas da exata maneira como estão previstos na legislação, servindo como o melhor exemplo a própria segurança pública.
Ora, é impossível garantir completa e plenamente a segurança, de maneira eficaz, eficiente e uniforme, para todos habitantes, todo o tempo, especialmente por conta das condições e do efetivo existente. Por exemplo, em 2015, o DF contava com apenas 1 policial para cada 194 habitantes, valendo salientar que é região com um dos melhores índices "PM/cidadão" do país (senão o melhor)! (fonte). Só que mesmo assim, tal exigência continua sendo desarrazoada e ilegal.
Primeiramente não há de se confundir o gênero "segurança pública" com uma de suas ramificações "eficiência na apuração de crimes", muito menos com o direito do cidadão em comunicar a ocorrência com o dever do policial em apurar infrações penais para a consequente punição estatal.
Segundo, os prazos de (praticamente) todos os entes públicos tornaram-se "impróprios" (é o "tem que cumprir, mas se não quiser, não precisa" ou "o prazo está na lei, mas não precisa cumprir se não quiser"), portanto, apesar da enorme demanda, dificilmente existe qualquer pressão no cumprimento de prazos, fora o fato de sempre ser possível solicitar mais prazo para diligências (art. 10, §3º, CPP), valendo salientar que existiram investigações que duraram uma absurda quantidade de tempo sem ter resultado em algo.
Terceiro, estamos na era da tecnologia, momento no qual não existe distância para a informação, que percorre milhares de quilômetros com apenas um clique.
Com todo o exposto, será que nesse mundo contemporâneo tão tecnológico é legal, ético, ou mesmo moralmente admissível desamparar a vítima fragilizada "obrigando-a" a comunicar sua ocorrência em outra delegacia?
Será que é tão difícil assim obedecer à legislação (mesmo anteriores à lei de 2018) e atuar em prol dos objetivos e fundamentos da República? Da Constituição Federal? Enfim, será tão difícil cumprir com o próprio dever constitucional em prol da nação brasileira?
Post Scriptum: a propósito, também não cola jogar a culpa na "tecnologia/estrutura sucateada" das delegacias, pois, mesmo a tecnologia mais ultrapassada consegue suportar a demanda da comunicação instantânea, portanto, a suposta falta de tecnologia também não é escusa aceitável para "mandar" a vítima ir ̶p̶a̶s̶t̶a̶r̶ para outra delegacia, portanto, inexiste qualquer empecilho real para a colaboração entre os órgãos policiais quanto à apuração da comunicação de ocorrência.
Posso afirmar sem receio nenhum, pois, se mesmo meu antiguíssimo computador da COMPAQ, com 2GB de memória Hard Disk (sim, HD, o armazenamento do PC, atualmente o HD mais "pereba" é 250-500GB), com 64MB de RAM e Windows 98, processador Pentium II, suportava digitação, envio e recebimento de e-mails e/ou arquivos, bem como transmissões ao vivo (do MSN messenger), a 56Kbps, qualquer maquinário atual consegue suprir o necessário.
Arthur Bicudo Furlani
Advogado