DIREITO PROCESSUAL ENQUANTO INSTRUMENTO DA EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS – parte 1.
- Criado em 08/10/2018 Por Vicente Aron Machado da Rocha
Quando se pensa em "direito processual", logo - não por acaso - vem à mente dos aplicadores do direito os velhos dogmas da escola instrumentalista do início do século XX, especialmente a escola italiana (da qual nossa legislação processual se serve em muitos institutos). Essa escola instrumentalista de processo, cujos expoentes são Chiovenda e Carnelutti, previam uma dicotomia estanque entre o direito postulado e os meios para que esse direito seja concedido (ou não) pela jurisdição. Desse modo, admitia-se uma conceituação de processo enquanto um instrumento do cidadão para ter acesso à tutela pretendida, independentemente da sua efetividade. Pode-se resumir com o velho jargão de "processo como processo e pelo processo.[1]
A propósito, esse formalismo fático advinha de uma cultura instalada no século XIX segundo a qual o juiz - boca da lei - estaria adstrito à vontade do legislador, legitimamente constituído para "criar o direito", sem que houvesse uma análise sistemática do ordenamento normativo e sem uma preocupação maior com a efetividade da tutela pretendida pelo cidadão que procurava o Poder Judiciário. Nesse contexto, pouco ou nada se poderia fazer senão ingressar com a demanda e aguardar pacientemente a aplicação adstrita da lei. Se houvesse tipicidade, o cidadão seria atendido; do contrário, estaria o Judiciário "intervindo" nas funções legislativas e nada poderia ser feito.
Ocorre que a Segunda Guerra Mundial modificou substancialmente esse paradigma, introduzindo o Constitucionalismo e, principalmente, o respeito à hierarquia das normas como o cerne básico do Estado de Direito. Para tanto, a pirâmide kelseniana introduzida em 1934 pela obra "Teoria Pura do Direito" traria não apenas maiores limites à atuação de todos os seres socialmente gregários, mas também, de certo modo, impunha obrigações a estes mesmos indivíduos enquanto partícipes dessa mesma sociedade. A supremacia da Constituição, com a sua coerência e coerção sobre todo o Estado de Direito tornaria o Poder Judiciário como o fiel da balança nas relações do Poderes Estatais, conferindo-lhe verdadeiro papel de guardião da constituição. [2][3] Logo, ainda que de maneira crua, Kelsen lançava as bases para a futura teoria dos direitos fundamentais, considerando primordial a verificação das possibilidades de aplicação normativa a determinadas condutas:
(...) a ordem jurídica regula a conduta humana não só positivamente, prescrevendo uma certa conduta, isto é, obrigando a esta conduta, mas também negativamente, enquanto permite uma determinada conduta pelo fato de a não proibir. O que não é juridicamente proibido é juridicamente permitido. [4]
Nessa senda, considerando-se que a doutrina kelseniana refutava a ideia de uma justiça sem a observância da coerência e coerção do ordenamento liderado pela Constituição, o autor rejeitou a ideia de Justiça absoluta, admitindo, porém, como conceito de Justiça, a aplicação da norma jurídica ao caso concreto, relativizando-se a substância de Justiça. Logo, o que se pode compreender como justo relaciona-se com a tipicidade da conduta, com a correspondência de uma norma juridicamente viável com determinada ação do indivíduo. Assim, justamente nesse ponto tem-se a convergência da velha dogmática positivista com o modelo Constitucional de Processo construído pós-1950: se há uma norma a ser seguida, qualquer que seja a sua espécie deverá ela produzir seus efeitos sobre os indivíduos na exata medida da sua eficácia, em consonância com as demais interpretações – quando possível.
Assim, Kelsen lançava as bases, ainda de maneira incipiente, para que o constitucionalismo e a teoria dos direitos fundamentais pudessem aprimorar o positivismo, sucedendo-lhe o construtivismo, obviamente limitado pela própria teoria da argumentação. A consolidação e a evolução do processo enquanto instrumento de concretização de direitos fundamentais, entretanto, será abordada no próximo artigo.
[1] A processualista clássica conceitua direito processual como atos Coordenados ao objetivo da atuação da vontade da lei (CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil, tradução da 2ª edição italiana de J. Guimarães Menegale. São Paulo, Saraiva, 1969; vol 1: p. 37).
[2] Contraposição à Carl Schimidt, autor alemão que defendia o papel do Chefe de Estado como o verdadeiro guardião da Constituição em um Estado de Direito, cabendo a ele a sua interpretação maior enquanto verdadeiro aplicador das normas criadas pelo Legislativo (SCHMITT, Carl. O guardião da Constituição. Trad. Geraldo de Carvalho. Belo Horizonte, Del Rey, 2007).
[3] Oriundo da escola positivista de pensamento, não se pode afirmar, entretanto, que Kelsen era defensor da hermenêutica, eis que sua intenção era, justamente, a “purificação do direito” afastando-se premissas sociológicas ou filosóficas tanto quanto possível. O primordial da aplicação da sua teoria na evolução do instrumentalismo para o formalismo-valorativo consiste na compreensão de que os direitos fundamentais, enquanto inseridos em um ordenamento via Constituição, permeiam a sua aplicabilidade por todo o ordenamento jurídico.
[4] Kelsen, Hans. Teoria pura do direito / Hans Kelsen ; [tradução João Baptista Machado]. 6ª ed. - São Paulo : Martins Fontes, 1998, p. 169.