Andar com arma branca fora de casa é crime (art. 19, LCP) - afirmação correta ou teratológica?
- Criado em 11/09/2018 Por João Ralph Gonçalves Castaldi
Primeiramente há de se esclarecer o fato de que pretendeu-se, na verdade, dizer que a conduta é contravenção penal, e não crime.
Prosseguindo, imagine a seguinte situação hipotética: um artigo especifica que portar "um treco", sem licença da autoridade pertinente, é contravenção penal. Agora, imagine que, após severa busca, a legislação mostre que definição de "um treco" é "uma parada que treca" e "um treco coisado" é "uma parada que treca de modo específico, mas nem tanto".
Partindo dessas definições extremamente abertas, seria legal, sábio ou mesmo prudente, aplicar e condenar alguém como incurso no tal artigo quem portava "um treco coisado", ou seja, aplicando o conceito de norma penal em branco, em completo desrespeito aos princípios, além de desconsiderar a "licença da autoridade", prevista expressamente no próprio dispositivo?
Para o TJDFT, sim, sem dúvida, simplesmente porque o conceito aberto envolve aquele mais específico, e, mesmo com a segunda parte do tipo penal clara e expressa, não existindo licença pertinente dada por autoridade competente, expressa no tipo penal referente ao porte em questão, bom, azar do cidadão. Por quê? Porque sim. É o que se extrai >deste acórdão, cujo inteiro teor é a própria ementa (é sério).
O acórdão foi citado no informativo de jurisprudência nº 365, daquele tribunal, e determinou que "a contravenção penal de porte de arma branca está em vigor e não depende de regulamentação".
Em completa teratologia. Explico:
A partir do artigo 18 da Lei de Contravencoes Penais - LCP, encontramos a palavra "arma", e, com a leitura dos demais artigos do mesmo capítulo, presume-se que aquela palavra se trata de arma de fogo, afinal, improvável imaginar que "sem licença da autoridade competente", "ou munição" e "inexperiente no manejo da arma" remetam a outro tipo de armamento. Há de se levar em conta o único termo "arma de fogo" em todo o diploma legal, no artigo 28, o que poderia gerar, no mínimo, alguma desconfiança.
Como o capítulo I faz referência à pessoa (que teria sido mais acertada a nomenclatura 'referentes à administração pública') e o capítulo III a incolumidade pública , não seria tão equivocado concluir que "arma" e "arma de fogo", para os fins daquela lei, seriam a mesma coisa, eis que, quanto ao armamento, um trataria de condutas de perigo abstrato e outro a de perigo real.
Contudo, apesar do fato de que toda norma penal deve ser clara, objetiva, de fácil entendimento para todos (e não apenas para juristas), a indução é insuficiente para determinar o significado daqueles termos, sendo necessárias legislações específicas para definí-los, sempre atualizando-as no decorrer dos tempos. Atualmente, sobre as armas de fogo, temos o Estatuto do Desarmamento, com outras legislações relacionadas.
Apesar do referido Estatuto mencionar "regulamento" ao menos 40 (quarenta) vezes, não há menção expressa sobre qual seria esse diploma específico.
Porém, graças à tecnologia moderna, encontramos remessa ao Decreto nº 5.123, de 2004, que, infelizmente, traz apenas o conceito de arma de fogo "de uso permitido" e "de uso restrito".
Felizmente, no artigo 49 do retro mencionado decreto há, expressamente, informações sobre onde o cidadão poderá encontrar os termos gerais, técnicos e legais pertinentes. Atualmente remete ao Decreto nº 3.665, de 2000, mas, especificamente, aos seus anexos.
Antes de conhecermos os termos técnicos, gerais e legais, analisemos o tipo penal do art. 19, da Lei de Contravencoes Penais - LCP, ipsis litteris: Trazer consigo arma fora de casa ou de dependência desta, sem licença da autoridade.
Por hora, deixemos de lado a parte final do artigo, focando apenas em determinar o conceito do termo "arma".
No Decreto nº 3.665, de 2000, em seu artigo 3º, encontramos 45 termos com as respectivas definições, mas copia-se apenas os incisos pertinentes ao artigo:
IX - arma: artefato que tem por objetivo causar dano, permanente ou não, a seres vivos e coisas;
XI - arma branca: artefato cortante ou perfurante, normalmente constituído por peça em lâmina ou oblonga;
Infelizmente, a definição trazida pelo inciso IX, do art. 3º, do Decreto nº 3.665, de 2000 é extremamente aberta, o que não ajuda em nada a aplicação do art. 19, da LCP.
Precisaríamos, no mínimo, de uma definição para "por objetivo", que muito provavelmente continuaria gerando teratologias.
Ora, grande parte dos objetos tem "por objetivo" causar dano à seres vivos ou coisas, e a outra parte pode ser utilizada com tal finalidade, afinal, não fica claro se o objetivo é a finalidade primordial para qual o artefato fora criado ou se é pelo objetivo do agente, já que mesmo o famoso "homem médio" pode ser muito criativo.
Ainda que considerássemos "por objetivo" apenas como a "finalidade primordial", grande parte da sociedade, neste momento, estaria incursa em contravenções penais, conforme alguns dos inúmeros possíveis absurdos, frutos dessa teratologia:
i) Todos aqueles que compraram, venderam, fabricaram, possuem em suas residências ou estejam portando quaisquer talheres, estarão incorrendo em contravenção penal (art. 18 e/ou 19, LCP), já que colheres podem cortar, garfos e hashi (vulgo "pauzinhos para sushi") podem perfurar, vez que arma branca independe de lâmina ou oblonga (oblongo/a: é uma forma geométrica que possui mais comprimento que largura. Diz-se também de algo oval ou então elíptico);
ii) Todos aqueles que deixaram alienados, menores de 18 anos ou pessoa inexperiente e/ou não tentam efetivamente evitar possível posse dos seus talheres aos retro citados responderão por contravenção penal (art. 19, § 2º, alíneas b e c). *Vale ressaltar que qualquer um que tenha se cortado, durante o manejo ou não, pode ser considerado inexperiente no manejo;
iii) Todos aqueles que praticaram quaisquer das condutas anteriores com quaisquer materiais para escrever ou para ser escrito, estarão incorrendo nas mesmas condutas típicas, afinal, a caneta, por exemplo, tem o objetivo primordial de danificar, com tinta, a parte do papel na qual se escreve, e o quadro negro, por exemplo, deteriora o giz ou "canetão" que nele se risca;
iv) O raciocínio do item anterior se aplica à materiais de construção, jardinagem, diversos itens de mecânica, pet shops, limpeza e higiene pessoal, etc. (pesticidas, fungicidas, piolhicidas, entre a infinidade de "cidas" existentes), afinal, mesmo as "pragas" são seres vivos, e "coisas" possui um significado extremamente vasto.
Isso somente aplicando as ofensas aos diversos princípios do direito penal constantes naquele precedente (verdadeira analogia in malam partem e ofensa direta ao princípio da legalidade/reserva legal [especialmente à três dos quatro "subprincípios" que iniciam com lex].
Caso haja, conjuntamente, a desconsideração da segunda parte do art. 19, como fez a convicção dada pela livre apreciação da lei, presente naquele acórdão, a possibilidade de absurdos jurídicos torna-se infinita ao quadrado.
Em suma, a aplicação pena por intermédio de um conceito incerto de uma norma penal em branco já seria, por si só, teratológica, se a aplicação desconsiderar um dos elementos essenciais ao tipo então, torna-se teratologia qualificada.
Caso contrário... Ih, caramba, terei de me entregar... comprei uma raquete elétrica, que é arma por definição, já que tem o objetivo primordial de matar demôn... seres vivos alados... nem poderei alegar legítima defesa... =(