Análise de um caso concreto: o porquê de sempre desconfiar do argumento de autoridades (parte III).
- Criado em 11/09/2018 Por João Ralph Gonçalves Castaldi
*Artigo muito longo. Informei que a parte III seria a última, mas ficaria numa extensão absurda (mais absurda do que já está, pois não consigo "juridicar" o caso concreto de modo menos explicativo).
Pré-finalização da história de uma moça, seu balanço, uma árvore supostamente agredida e servidores públicos adeptos ao desserviço (>parte I, parte II).
Recapitulemos que haveria indiciamento do servidor público em diversos delitos, bem como a conduta dos policiais poderia ser tipificada. Ressaltei ser necessário ir um pouco além do convencional, mas nada fora da interpretação permitida, nenhuma grotesca "ginástica" de interpretativa jurídica.
Pois bem, pela ordem cronológica dos acontecimentos:
1- Assim que o servidor público chego, da maneira mais descortês possível, exigiu que fosse retirado o balanço para confisco e mandou que as três se retirassem do parque. Vejamos o que o CP diz sobre constrangimento ilegal:
- Art. 146 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda.
Para a conduta ser típica, basta existir o constrangimento, podendo advir de coação física (vis absoluta) ou moral/psicológica (vis relativa/absoluta). A coação moral destina-se à diminuir a capacidade de resistência psicológica da vítima a fim de completar o restante do tipo penal (fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda).
É basicamente quando alguém obriga a outrem a contrariar o inciso II, do famoso artigo 5º, da CF, ipsis litteris: ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Ou seja, alguém que se utiliza de poder delegado pelo estado, para constranger alguém a lhe entregar sua propriedade e que obrigue outras a abdicarem de seu direito constitucional de ir e vir, sob premissa fora da lei, definitivamente comete constrangimento ilegal.
É discutível o cabimento do delito de extorsão, mas o crime do 158 "cai" melhor numa situação posterior.
2- Após desamarrar (o balanço), tentou argumentar com o servidor, que subitamente pegou uma ponta da corda do objeto e puxou com força, ato que não cessou mesmo após a moça cair, arrastando-a por alguns metros, pois não queria sua propriedade indevidamente tomada. Vejamos o que o CP diz sobre tentativa, dano qualificado e roubo:
- Art. 14 - Diz-se o crime:
- [...]II - tentado, quando, iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente.
- Art. 157 - Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência:
- Art. 163 - Destruir, inutilizar ou deteriorar coisa alheia:
- Parágrafo único - Se o crime é cometido:
- I - com violência à pessoa ou grave ameaça;
Apesar de não se saber ao certo o que se passava no interior da mente do indivíduo, sua exigência do momento anterior, cominada com o ato brutalmente de puxar o balanço, faz existir forte presunção de que queria tomar o balanço a qualquer custo, ainda que não fosse para si, mas "para o estado". Quanto a violência, bem, que outra coisa seria puxar um objeto com força suficiente para derrubar uma pessoa e, por esta não soltar, continuar arrastando-a por alguns metros?
Novamente, poderia haver o crime de extorsão, eis que possui enorme semelhança com o delito do 157, mas, ainda se encaixa melhor em situação posterior.
Logo, o indivíduo que usa de sua força física para tomar o bem de outra pessoa, com violência ao ponto de arrastá-la no chão, mas não consegue em razão da tenacidade da proprietária, comete o crime de roubo, na modalidade tentada.
Mesmo não estando claro na leitura (pois não foi informado para mim), é presumível que o material tenha se deterioriorado, afinal, nenhum balanço simples aguentaria servir como um violento cabo de guerra entre dois adultos.
A conduta necessária para existir crime de dano não parece tão complexa, porém, existe dissonâncias jurisprudenciais. A ideia que (me) parece fazer mais sentido vem de Magalhães Noronha: "Dizer que o agente que cientemente destrói uma coisa não quer prejudicar o dono não nos parece sustentável, pela simples razão de que esse prejuízo é consequência intrínseca, natural e obrigatória da destruição" ( Direito penal , v. 2, 1986, p. 309).
Ideia contrária seria, analogamente, supor inexistência do crime: i) de homicídio quando o indivíduo fanático, movido por sua fé, tenta "purificar" o maníaco sexual através das chamas; ii) de lesão corporal quando um indivíduo "endireitasse na pancada" o rosto de outrem, acreditando que a vítima ficará mais esbelta; iii) de roubo ou furto quando dois agentes, pela segurança pública, tomam (com ou sem emprego de violência) o carro de um indivíduo que frequentemente dirige embriagado; etc.
Em outras palavras, não existiriam crimes se os indivíduo dissessem: i) Não "doutô" excelência, meu livro santo disse que o fogo purificaria o mal, e que se ele se abstivesse de seus "demonhos" ele não teria morrido! Nunca tive o dolo específico de matá-lo, a divindade quem quis!; ii) Poxa excelência, eu só queria deixá-la mais bonita, esse rosto torto precisava de uma ajeitadinha, só dei umas pancadinhas para embunitecê-la, não tive a vontade específica de lesioná-la, e; iii) Poxa "doutô", vâmo deixá um cara irresponsável desses dirigindo pra cima e pra baixo mamado? Nóis só tomou o carango pro cara num fazêbestêra!
Assim, o entendimento doutrinário de Noronha faria com que o crime de dano se configurasse bastando que o agente assumisse o risco (dolo eventual) de destruir, deteriorar ou inutilizar um bem para que estivesse configurado o delito do artigo 156.
A qualificação se deveria ao fato de que numa mesma conduta, houve a lesão corporal e o dano, ou seja, um concurso formal de delitos decorrente da mesma ação (art. 70, segunda parte, CP), mas justamente por conta da lesão corporal, existe a qualificação do crime para dano com violência à pessoa.
3- Deixou de tomar providências porque um dos policiais militares, após conversar com o agressor, advertiu que, caso fosse à justiça, o servidor poderia processá-la por crime ambiental estava no regimento interno daquele lugar, e tal frase, posteriormente corroborada com desencorajamentos de suas duas acompanhantes, quebrou seu ímpeto por justiça, dando lugar ao medo e ao conformismo. Vejamos o que o CP diz sobre calúnia, difamação, estelionato e extorsão:
- Art. 138 - Caluniar alguém, imputando-lhe falsamente fato definido como crime:
- Art. 139 - Difamar alguém, imputando-lhe fato ofensivo à sua reputação:
- Art. 158 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, e com o intuito deobter para si ou para outrem indevida vantagem econômica, a fazer, tolerar que se faça ou deixar de fazer alguma coisa:
- Art. 171 - Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento:
Os crimes contra a honra costumam causar confusões em muitos operadores do direito, mesmo experientes, vez que são mínimos os detalhes que fazem a diferença de um delito para o outro, bem como "pegadinhas" da interpretação literal dos artigos.
As cortes superiores, bem como doutrina majoritária, decidiram, combatendo que a interpretação literal nos induz a crer, que imputar um crime "x" à determinada pessoa não é calúnia, mas sim difamação, para que se configure calúnia, é necessário dizer que a pessoa fez condutas que se enquadram em um tipo penal.
Em outras palavras, "atribuição de fato e não de tipo penal incriminador: não basta, para a configuração do crime de calúnia, imputar a alguém a prática de um “homicídio” ou de um “roubo”, por exemplo, sendo necessário que o agente narre um fato, ou seja, uma situação específica, contendo autor, situação e objeto”. (NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado . 14 ed. Rio de Janeiro : Forense, 2013, p. 747).
Daí surge a dúvida, se o servidor falou aos policiais que:
- "às 10h, a moça, com animus nocendi para com determinada árvore ornamental de logradouro público, danificou, lesou, ou maltratou-a por meio de seu balanço", enquadraria-se no tipo penal calúnia, porém se falou;
- "às 10h, a moça cometeu crime ambiental", enquadraria-se no tipo penal difamação.
Quanto ao crime de extorsão, o tipo penal explicita utilizar a violência ou grave ameaça para obter não somente vantagem econômica, mas a fazer, tolerar que se faça ou deixar de fazer alguma coisa.
A grave ameaça, ventilada anteriormente, é muito mais ampla que instrumentos capazes de provocar temor na vítima. Mas para aprofundar, confira-se o trecho pertinente do voto Luiz Fux, dado no HC 117819/MG:
"A grave ameaça é o constrangimento ou a intimidação provocada na vítima a fim de subtrair um bem móvel de sua propriedade. Trata-se de um elemento subjetivo, tendo em vista a necessidade de se analisar, no caso concreto, se o ato praticado pelo agente foi realmente capaz de incutir na vítima um temor fundado e real. Contudo, o caráter subjetivo da grave ameaça não dispensa a correlação de proporcionalidade e razoabilidade que deve existir entre a conduta praticada pelo agente e a ameaça sentida pela vítima.". (grifos meus).
Dito isso, a ameaça de criminalizar a moça ali, em frente aos policiais, poderia servir como a grave ameaça, uma vez que o próprio policial advertiu, tanto é que a vítima tolerou os crimes sofridos e deixou de tomar providências contra o servidor público.
Nessa conduta também é cabível o crime de estelionato, afinal, o tipo penal fala em vantagem ilícita, e não meramente econômica. Nesse sentido caminha a jurisprudência majoritária, pois "a referida vantagem não necessita ser econômica, já que o legislador não restringiu o seu alcance como fez no tipo que define o crime de extorsão, no qual empregou a expressão indevida vantagem econômica" (PRADO, Luiz Regis, Curso de Direito Penal Brasileiro - Vol. 2. 9ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 523).
Dito isso, a impunidade do servidor público é a clara e buscada vantagem ilícita em detrimento dos direitos da moça vítima, mediante a ilusão de que ela quem é a criminosa, induzindo-a ao erro, utilizando-se da ignorância da mesma.
E, como explanado na parte II, o artigo 350, do CP, nada mais é que o artigo 4º da Lei do Abuso de Autoridade antes de seu nascimento, sendo desnecessário repetir.
Para finalizar, é necessário discorrer sobre as condutas dos policiais, mas tal assunto será abordado em outro artigo, finalizando (de verdade) o tema.