Análise de um caso concreto: o porquê de sempre desconfiar do argumento de autoridades (parte final)
- Criado em 11/09/2018 Por João Ralph Gonçalves Castaldi
Finalização da história de uma moça, seu balanço, uma árvore supostamente agredida e servidores públicos adeptos ao desserviço (>parte I, parte II, parte III).
Para a conclusão, recapitulemos as únicas condutas dos policiais:
1- Apesar de ter sido claramente informada sobre os crimes que o servidor público cometera, e que (nas filmagens) o mesmo demonstrava nervosismo excessivo enquanto conversava com os policiais, deixou de tomar providências porque um dos policiais militares, após conversar com o agressor, advertiu que, caso fosse à justiça, o servidor poderia processá-la por crime ambiental estava no regimento interno daquele lugar[...]
Por objetividade, doravante nomearei o policial que advertiu de PMA e o outro de PMO.
Sem levar em conta a "ginástica interpretativa" da parte anterior sobre demais delitos, e supondo que não foram informados da forma arbitrária como o indivíduo exigiu o balanço e a retirada das três (vez que a tendência das vítimas é relatar os fatos mais "quentes"), ambos foram comunicado dos acontecimentos de lesão corporal leve e dano qualificado, e tais delitos somente se procedem mediante a representação da vítima, assim, ao indagarem o interesse da vítima em prosseguir, ambos policiais teriam adiantado o trabalho do judiciário
Porém, não tomar atitude nem contra a moça, (que, em tese, cometeu crime ambiental) e advertí-la sobre as "consequências" de buscar seus direitos poderia ser interpretado como o delito de favorecimento pessoal:
348 - Auxiliar a subtrair-se à ação de autoridade pública autor de crime a que é cominada pena de reclusão:
[...]§ 1º - Se ao crime não é cominada pena de reclusão:
Pena - detenção, de quinze dias a três meses, e multa.
O verbo do artigo é simplesmente "auxiliar", ou seja, qualquer tipo interferência condescendente ao crime (podendo ser ativa ou omissiva) pode ser considerada como auxílio.
Assim sendo, por um lado, desencorajar a moça poderia ser interpretado como o auxílio à impunidade daquele técnico, e pelo outro, (supondo que o regimento trata-se de repetição da lei) sendo o "crime ambiental" de iniciativa da ação pública incondicionada (art. 26 da Lei nº 9.605 de 1998), não poderiam deixar de tomar as providências cabíveis para o prosseguimento da ação, auxiliando a "impunidade" da moça.
Inclusive, especialmente por conta da omissão em tomar as medidas cabíveis em ação pública incondicionada, poderiam adentrar no crime de prevaricação:
Art. 319 - Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal:
Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa.
Isso se deve ao fato de que a simples desídia ou comodismo (vulgo desinteresse ou preguiça) são considerados interesse/sentimento pessoal para os fins desta tipificação.
Logo, o policial militar que sabendo, inequivocamente, da prática de crime que se procede mediante ação pública INCONDICIONADA, deixa de tomar as providências cabíveis, comete o crime de prevaricação.
É discutível a coautoria no crime de estelionato, por ambos policiais.
Ao PMA, porque deveria saber (ao consultar o tal regimento interno e a legislação vigente) que as condutas daquela moça resultariam na ação penal independentemente de sua vontade (o que forçaria a tomada de providências pela mesma), contudo, induziu a moça ao erro da discricionariedade, e a aconselhou negativamente.
E ao PMO porquanto a omissão ao seu dever ético-jurídico, múnus públicos de todos os representantes do estado, pode ser interpretada como adição à indução ao erro, pois estaria implicitamente concordando com as informações errôneas dos outros dois.
Com essas condutas, além da prevaricação, teriam (des)auxiliado a moça em prol da impunidade do técnico agressor.
Ainda, é discutível que ambos cometeram o crime de condescendência criminosa, um para com o outro:
Art. 320 - Deixar o funcionário, por indulgência, de responsabilizar subordinado que cometeu infração no exercício do cargo ou, quando lhe falte competência, não levar o fato ao conhecimento da autoridade competente:
Pena - detenção, de quinze dias a um mês, ou multa.
Isto é, o funcionário público que sabe da falta cometida por outro de mesma hierarquia está compelido à delatá-lo, sob tal penalidade, pode-se dizer que a segunda parte do artigo é um "dever de delação" de cada servidor público. Por falta de previsão legal, não se admite a modalidade culposa.
Assim sendo, se ambos se omitiram em tomar providências, principalmente para a ação penal pública incondicionada, e nenhum deles delata o outro, cometem condescendência criminosa.
Na teoria o desconhecimento da lei é inescusável, ainda mais por servidores públicos que são as primeiras portas (geralmente para as celas) da aplicação (repressiva-)legislativa, mas na prática, vemos a ignorância (da lei também) prevalecer nos mais altos graus hierárquicos, públicos e privados. E tal alegação de desconhecimento poderia diminuir a já branda punição em até 1/3 (art. 21, CP), o que a tornaria severamente insignificante.
E aqui concluo a análise desse caso. É claro que as ideias elencadas foram em prol da moça, mas todos os entes tem o direito à ampla defesa e ao contraditório, à razoabilidade e a proporcionalidade, enfim, à justiça.
Nesta série de artigos, pretendi demonstrar como "pequenas" condutas feitas por agentes públicos podem ser graves, que apesar de "todos" entes públicos fazerem a conduta "X", não significa que estejam certos, e o mais importante, a incentivar a busca ao saber, principalmente, de como funciona o estado democrático de direito.
Por isso, evite acreditar cegamente na experiência "do amigo/vizinho/colega que já passou por isso" e sempre consulte um advogado, podes estar sendo injustiçado sem que percebas.