Os efeitos da MP da Liberdade Econômica para o financiamento de startups
- Criado em 11/09/2019 Por LinkLei
Análise de três inovações importantes para empresários e investidores
No último mês de agosto, o Congresso aprovou uma versão modificada da chamada “MP da Liberdade Econômica” (Medida Provisória nº 881/2019). Agora, a versão aprovada aguarda a sanção do Presidente da República. O texto normativo foi objeto de críticas muito pertinentes, em especial quanto à chamada “Declaração de Direitos de Liberdade Econômica”1 e à alteração de leis trabalhistas. Mas há alguns aspectos elogiáveis que serão destacados aqui. Algumas das alterações promovidas no Código Civil impactarão profundamente o cenário de investimentos em “startups”.
Para tratar das novidades nessa área, este texto será dividido em três partes. A primeira tratará da possibilidade de que sociedades limitadas contem com um único membro; a segunda abordará as novas disposições sobre a chamada “desconsideração da personalidade jurídica”; por fim, na terceira parte serão apresentadas as novidades que dizem respeito aos fundos de investimento.
Sociedade limitada de uma única pessoa
Toda empresa enfrenta uma questão muito relevante no momento de sua constituição: qual tipo societário escolher? Durante muito tempo, a legislação brasileira oferecia ao empreendedor que atuava sozinho apenas duas opções: ou iniciava sua atividade como microempreendedor individual ou então precisava buscar pelo menos uma outra pessoa para compor uma sociedade limitada. A primeira opção era muito inconveniente, uma vez que o patrimônio pessoal fica sujeito à responsabilidade jurídica por dívidas contraídas no exercício da atividade econômica; já a segunda era recomendável, mas não era a ideal, uma vez que o empresário precisava incluir no quadro societário uma pessoa que não estava necessariamente envolvida na atividade.
Para corrigir esse problema, foi criada em 2011 a figura da EIRELI (empresa individual de responsabilidade limitada), que permitiu a constituição de empresas de responsabilidade limitada com um único integrante. Todavia, algumas restrições previstas no artigo 980-A do Código Civil tornam esse tipo societário pouco atrativo: o capital social não pode ser inferior a 100 vezes o salário mínimo e uma pessoa natural só pode constituir uma única empresa desse tipo.
No caso das startups, como os investimentos da fase inicial se dão por meio de contratos de mútuo conversível, isto é, um empréstimo que pode ser convertido em participação societária, a EIRELI não é a modalidade societária mais recomendável, na medida em que não é possível incluir novos sócios. Claro que uma EIRELI sempre pode ser convertida em outro tipo societário, mas este é um procedimento lento e custoso.
Para corrigir esse problema, o texto recentemente aprovado traz a possibilidade de que uma única pessoa integre uma sociedade limitada. Ou seja, um empreendedor pode constituir uma empresa de responsabilidade limitada e possuir 100% de participação sobre ela, sem precisar sofrer as limitações da EIRELI. À medida que a empresa assinar contratos de mútuo conversível, outras pessoas poderão compor o quadro societário, sem a necessidade de mudança do tipo de empresa.
Restrições à desconsideração da personalidade jurídica
Uma ameaça que assombra muitos empresários é a chamada desconsideração da personalidade jurídica. Apesar de o patrimônio pessoal do sócio estar em regra protegido numa sociedade limitada ou numa sociedade anônima2, há algumas hipóteses em que essa proteção é desconsiderada pelos juízes.
Antes da edição da MP nº 881/2019, o artigo 50 do Código Civil era bastante sucinto, com previsão de duas hipóteses de desconsideração da personalidade jurídica, mas sem definições precisas. As hipóteses para configuração do abuso de personalidade jurídica eram as seguintes: desvio de finalidade e confusão patrimonial. Havia muitas críticas a essa redação em virtude de uma certa ausência de critérios claros que pudesse nortear a interpretação dos julgadores. Por isso, o texto aprovado no Congresso incluiu alguns parágrafos para torná-las mais claras e, assim, aumentar a segurança jurídica dos empresários e dos investidores.
As duas hipóteses já previstas na redação original foram mantidas: desvio de finalidade e confusão patrimonial. Porém, com o fim de diminuir o grau de discricionariedade dos juízes na interpretação dessas expressões, foram incluídos dois parágrafos para defini-las. Assim, a primeira hipótese foi conceituada como “a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza”; já a segunda foi conceituada como “a ausência de separação de fato entre patrimônios”, prevendo-se três circunstâncias que podem caracterizar essa situação3.
A nova redação do artigo 50 também passa a prever expressamente a possibilidade da “desconsideração reversa”4, afasta a possibilidade de desconsideração pelo simples fato de que duas empresas façam parte do mesmo grupo econômico e esclarece que não pode ser considerada desvio de finalidade a mera expansão ou alteração da finalidade original da atividade econômica desenvolvida pela empresa.
Regulação dos fundos de investimento
O terceiro ponto a ser destacado diz respeito à inclusão de quatro novos artigos no Código Civil (artigos 1.368-C a 1.368-F), com o fim de regulamentar os chamados “fundos de investimento”. Trata-se de uma modalidade de investimento que já existia, mas ainda não encontrava previsão no Código Civil. Por isso, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) se antecipou e estabeleceu algumas regras5. A principal modalidade utilizada para investimento em startups é o Fundo de Investimento em Participações (FIP).
Normalmente, esses fundos investem em empresas que já estão em fase de crescimento ou consolidação. Ao tratar desse tipo de investimento, costuma-se falar em venture capital e private equity. Enquanto o venture capital se destina a pequenas e médias empresas que possuem um elevado potencial de crescimento, o private equity se dá numa fase mais avançada, quando a empresa já se consolidou no mercado6.
Os fundos de investimento não possuem a natureza de pessoa jurídica, e sim de condomínio. Isto é, um grupo de pessoas ou de empresas reúne seus recursos para atingir determinadas finalidades. No caso do FIP, o objetivo é adquirir participações em empresas.
Antes da aprovação da MP, havia um cenário de grande insegurança jurídica envolvendo os FIPs. Isso porque, como não há uma personalidade jurídica autônoma, havia dúvidas quanto a eventuais responsabilidades dos investidores e dos gestores por eventuais dívidas das empresas objeto dos investimentos. O artigo 1.368-D prevê expressamente, porém, que o regulamento do fundo poderá prever a limitação da responsabilidade de cada investidor ao valor de suas quotas, limitação da responsabilidade dos prestadores de serviço do fundo ao cumprimento dos deveres particulares de cada um e a distinção entre classes de cotas (direitos e obrigações diferentes de acordo com cada classe).
Além disso, para afastar a responsabilização dos prestadores de serviços de fundos de investimento (dentre eles, os gestores), o artigo 1.368-E traz a previsão de os fundos respondem diretamente pelas obrigações assumidas. Os prestadores de serviço poderão ser responsabilizados apenas se ficar comprovado dolo ou má-fé no exercício de suas atividades.
Conclusão
A chamada “MP da Liberdade Econômica”, em sua versão aprovada pela Câmara dos Deputados, trouxe novidades importantes para empresários e investidores. Neste artigo, foram destacadas três inovações: (i) a possibilidade de que a sociedade limitada tenha apenas um membro; (ii) estabelecimento de previsões mais claras na legislação quanto às hipóteses de desconsideração da personalidade jurídica; (iii) restrições à responsabilidade de investidores e prestadores de serviço de fundos de investimento.
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1 Dentre os textos críticos a aspectos da MP, destacam-se dois: a) FRAZÃO, Ana. MP da Liberdade Econômica: temos razões para comemorar ou para nos preocupar?. 2019. Disponível em <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/mp-da-liberdade-economica-temos-razoes-para-comemorar-ou-para-nos-preocupar-14082019>. Acesso em 21 de agosto de 2019; b) SICA, Lígia Pinto; BIANQUINI, Heloísa. Na busca pela liberdade econômica, governo esqueceu da segurança jurídica. 2019. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2019-ago-13/opiniao-governo-busca-liberdade-economica-seguranca-juridica>. Acesso em 21 de agosto de 2019.
2 A responsabilidade de um sócio se limita à integralização do capital social, no caso de sociedade limitada, e ao preço de emissão das ações, no caso de sociedade anônima.
3 As três circunstâncias previstas são: (i) cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa; (ii) transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto o de valor proporcionalmente insignificante; e (iii) outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial.
4 Nesse caso, pode-se atingir o patrimônio da sociedade em função de dívidas dos sócios.
5 Instrução CVM nº 578. Disponível em <http://www.cvm.gov.br/legislacao/instrucoes/inst578.html>. Acesso em 19 de agosto de 2019.
6 Explicação mais detalhada sobre esses dois diferentes tipos de investimento realizados por fundos de investimento encontra-se em documento produzido em 2011 pela Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI) denominado “A Indústria de Private Equity e Venture Capital – 2º Censo Brasileiro”. Disponível em <https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/8419/Private_Equity_e_Venture_Censo.pdf>. Acesso em 22 de agosto de 2019.
MARCELO FRULLANI LOPES – advogado do escritório Frullani Lopes Advogados, especialista em Direito e Tecnologia da Informação pela Escola Politécnica da USP, graduado pela Faculdade de Direito da USP e mestrando em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela mesma instituição.