‘Direito Financeiro 4.0’: o futuro chegou
- Criado em 28/03/2019 Por LinkLei
Não há como deixar de dar atenção aos caminhos que a atividade financeira está seguindo na nova ‘economia digital’
É uma grande satisfação iniciar esta colaboração com o JOTA, cujo destaque no universo jurídico é reconhecido e crescente, e decorre de sua respeitabilidade e qualidade editorial.
Maior ainda é a satisfação de dividir este espaço com o colega Marcus Abraham, companheiro de lutas há anos pela difusão e avanço nos estudos e pesquisas em Direito Financeiro. Um ramo do Direito que há pelo menos duas décadas está em notável crescimento, mas ainda tem muito a oferecer, com amplas áreas de estudo pouco exploradas e na expectativa de que continuem sendo cada vez mais procuradas pelos acadêmicos, interessados e profissionais que lidam com o tema.
O leitor do JOTA já está habituado a ter contato com várias das relevantes questões do Direito Financeiro aqui trazidas com competência, didática e clareza, pelo professor Marcus Abraham.
Esperamos dar continuidade a esse trabalho de grande importância para a expansão e aprimoramento do Direito Financeiro, mantendo o leitor sempre informado dos assuntos mais importantes que afetam a nossa sociedade.
Nesse intuito, esse primeiro texto avança no tema levantado com muita propriedade na última semana, que indica os novos caminhos que o Direito Financeiro terá de seguir e aponta na direção do futuro que o espera.
Ao discorrer sobre os desafios da inteligência artificial nas finanças públicas, Marcus Abraham chama a atenção para os novos tempos criados pelos avanços na tecnologia da informação, que mudaram para sempre a vida das pessoas, em um caminho sem retorno. Uma transformação profunda e que avança com grande rapidez no mundo em que vivemos. Isso exigirá de todos nós – e inclui não só as pessoas físicas e as empresas –, especialmente o poder público, mudanças de paradigmas em suas relações.
Vê-se dos exemplos mencionados (Netflix, AppleTV, GloboPlay, Spotify, Google, Uber, Airbnb, OLX, Amazon e tantos outros) que o mundo não é mais o mesmo de poucos anos atrás. Os produtos mudaram, os consumidores mudaram, as relações pessoais e profissionais não ocorrem da mesma forma. Ressalta em seu texto os novos instrumentos proporcionados pelas ferramentas de inteligência artificial, capazes de abrir novas frentes e perspectivas para o setor público, que pode delas se valer para aperfeiçoar seus serviços, como os que já vem sendo utilizados pelo Poder Judiciário, pela Secretaria da Receita Federal, Tribunal de Contas da União e outros órgãos públicos.
São já bastante conhecidos os instrumentos da moderna investigação policial, muito utilizados em recentes e rumorosos casos, como os que integram a chamada “Operação Lava-Jato”, que envolvem a análise de operações financeiras sofisticadas, percurso das transações financeiras, comunicações por diversos meios e tantos outros Faz da oitiva de testemunhas uma prova que, embora necessária, pareça cada vez mais fazer parte de um passado distante da justiça criminal. Evidências de que o setor público não pretende – e nem pode – ser “atropelado” pelos fatos e se dissociar dessa nova realidade.
Nessa linha, e que tende a afetar diretamente as finanças públicas, não há como deixar de dar atenção aos caminhos que a atividade financeira está seguindo na nova “economia digital”.
Hoje muitas transações já se fazem com uso das “criptomoedas”, as moedas virtuais criadas sem ligação e não reguladas por Estados, e independentes de sistemas bancários institucionalizados. Sem lastro ou garantias jurídicas, apoiam-se em utilização da tecnologia de “blockchain”, voltada a criar uma nova “arquitetura da confiança”, sem o “Estado-garantidor”, revolucionando os conceitos hoje vigentes e capaz de superar a segurança proporcionada pelo ordenamento jurídico para assegurar a validade e dar respaldo às operações realizadas. A mais conhecida, e tida como a pioneira das “criptomoedas” é o bitcoin, que já vem sendo largamente utilizada para inúmeros tipos de transações, trazendo preocupação e angústia às autoridades, dadas as dificuldades de controle e fiscalização, o que tem permitido inclusive seu uso para financiamento de atividades ilegais e difíceis de serem rastreadas.
Um grande problema para o setor público, uma vez que cria empecilhos à tributação, identificação de transações, patrimônios e contribuintes, e pode levar a falhas graves na formação de um sistema que atenda aos princípios de justiça fiscal.
Em um futuro que pode estar mais próximo do que se imagina, talvez exija o próprio uso, pelo setor público, das referidas moedas, inclusive em políticas públicas. Um desafio ao ordenamento jurídico, a quem caberá regular as situações.
E uma incógnita para o Direito Financeiro, uma vez que tem na lei orçamentária, responsável por abranger e discriminar as receitas e despesas do Estado, o seu principal instrumento. Como fazer isso com as criptomoedas?
A integração das criptomoedas ao ordenamento jurídico é incipiente, e o que se encontra por ora são apenas referências ao uso de dinheiro eletrônico (e-money), como se vê na Lei 12.865/2013 e Circular BACEN 3.683/2013, que não se confunde com as criptomoedas; e a Receita Federal já orientou os contribuintes a declarar as moedas digitais como bens em 2017, conforme expõe André Castro Carvalho em seu texto Regime jurídico da e-cash bitcoin no Direito Financeiro brasileiro, cuja leitura se recomenda sobre o tema. Bancos centrais de vários países do mundo já estudam a possibilidade de emissão de moedas digitais.
Como incorporá-las ao Erário, a conveniência e oportunidade de fazê-lo, a forma de regulamentar os novos instrumentos e tecnologias no âmbito da atividade financeira do Estado, e integrá-las ao orçamento público, são perguntas cujas respostas ainda não estão delineadas, e o grande desafio a ser enfrentado.
Como também é o uso desses “recursos” para atender as necessidades públicas, viabilizar e implementar políticas públicas. Já se cogitou no Estado de São Paulo, para ilustrar, o uso de criptomoedas para projetos de iluminação pública nos municípios por meio de parcerias público-privadas (PPP). Logo, assim como alguns bancos vêm fazendo – v. g., o JP Morgan Chase –, nada impediria que o próprio ente público emitisse sua própria criptomoeda sob uma tendência de de-cashing. Em um sistema federativo, isso pode trazer uma complexidade jamais vista no federalismo fiscal brasileiro.
Releva destacar que outros países podem se adiantar, aceitando e regularizando transações financeiras por esses instrumentos. E as relações financeiras transnacionais terão de se adaptar a essa realidade. O que é apenas mais um motivo que justifica não ser possível fazer “vista grossa” a isso, nem adotar soluções voltadas apenas ao mercado interno.
Estamos vivenciando a “Quarta Revolução Industrial”, como já se reconhece ser o período atual. O universo do Direito não está alheio a esse debate. Essa “Revolução”, que deu origem à “Indústria 4.0”, já exigiu a adaptação das novas relações de trabalho, e por consequência das discussões tem torno do “Direito do Trabalho 4.0”. Mas, como está se vendo, há outros ramos do Direito sendo afetados, daí porque se fala no “Direito 4.0”, evidenciando a necessidade de se adaptar o ordenamento jurídico a essa nova realidade. A administração pública e outras ciências também seguem a mesma linha: “Governance 4.0” é expressão conhecida e os debates avançam no tema.
O fato é que o Direito Financeiro está diante de uma nova realidade, e urge que suas normas incorporem os fatos recentes, sob pena de sua obsolescência torná-lo imprestável para regular as finanças públicas em sua feição mais moderna. Convive-se hoje com leis que preveem institutos como o empenho, “ato emanado de autoridade competente”, documento do qual se extrai a “nota de empenho”, documento que indica “o nome do credor, a representação e a importância da despesa, bem como a dedução desta do saldo da dotação própria”, pré-requisito para a expedição da “ordem de pagamento”, “despacho exarado por autoridade competente determinando que a despesa seja paga”, pagamento este que se operacionalizará “por tesouraria ou pagadoria” (Lei 4.320/1964, artigos 58, 61, 64 e 65), onde se veem expressões e institutos próprios de uma legislação que ultrapassa cinco décadas, e não se mostra contemporânea aos os sistemas informatizados como o SIAFI e SIAFEM, hoje utilizados para gerenciar os recursos do orçamento público.
Mesmo os projetos de lei em curso voltados a substituir a mencionada Lei 4.320, como o Projeto de Lei de Qualidade Fiscal (PLS 229/2009), não estão contemplando os novos tempos, exigindo que sejam aperfeiçoados mesmo antes de serem aprovados, sob pena de já nascerem obsoletos.
Vê-se que há muito a fazer, e rápido. Os novos tempos não esperam mais. Estamos diante de um novo Direito Financeiro que já está sendo objeto de preocupação de alguns pesquisadores na área. É o Direito Financeiro de um futuro que já chegou.
O Direito Financeiro 4.0 está aí. E veio para ficar.
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Coluna publicada no último dia 21.3.2019 <https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-fiscal/desafios-da-inteligencia-artificial-nas-financas-publicas-21032019>
E em vias de serem implantados, como o uso de nuvem para armazenamento de dados e outras funcionalidades anunciadas pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (Transformação digital e o Judiciário, por Manoel de Queiroz Pereira Calças, in Estadão, publicado em 19.3.2019 <https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,transformacao-digital-e-o-judiciario,70002760278>.
FRANÇA, Felipe; NÓBREGA, Marcos. Pacta sunt servanda 3.0: blockchain e a nova arquitetura de confiança. In COSTA, Marco A. M. (org.) Aspectos jurídicos do blockchain. São Paulo: Trevisan, 2019. No prelo.
Cuja origem é o ano de 2009, atribuído ao pseudônimo Satoshi Nakamoto, uma pessoa ou grupo de pessoas responsável(is) pela estruturação do bitcoin.
Regime jurídico da e-cash bitcoin no Direito Financeiro brasileiro. In Revista de Direito Público da Economia – RDPE. Belo Horizonte, ano 16, n.61, p. 9-35, jan/mar 2018.
André Carvalho, Regime jurídico da “e-cash”…, op. cit., p. 27.
André Carvalho, Regime jurídico da “e-cash”…, op. cit., p. 10-11.
Nessa linha, veja-seo Projeto Governance 4.0: <http://governance40.com/> e também o texto de Klaus SCHWAB, Globalization 4.0. A New Architeture for the Fourth Industrial Revolution. In Council of Foreign Affairs, 2019 <https://www.foreignaffairs.com/articles/world/2019-01-16/globalization-40>.
Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal e Sistema Integrado de Administração Financeira para Estados e Municípios, respectivamente.
JOSÉ MAURICIO CONTI – Professor de Direito Financeiro da Faculdade de Direito da USP. Mestre, Doutor e Livre-docente em Direito Financeiro pela USP. Juiz de Direito em São Paulo.
Anônimo