O despertar da inteligência artificial e o que o direito tem a ver com isso
- Criado em 31/03/2022 Por LinkLei
Séculos e séculos de seleção natural foram responsáveis por gravar em nosso DNA a fagulha da insatisfação. Tanto no âmbito individual quanto no coletivo, sempre que a chama do progresso se extingue entra em cena essa essencial característica da existência humana para nos impulsionar em direção a novas conquistas. É assim que a evolução constante se torna um elemento fundamental para manutenção do bem-estar dos indivíduos e da coesão social, ao mesmo tempo em que, paradoxalmente, de tempos em tempos traz consigo inovações capazes de modificar profundamente a mesma estrutura social que ajudara a manter coesa.
Isso explica o porquê de toda grande inovação tecnológica ser recebida com uma mistura de entusiasmo e cautela. Não é raro, por exemplo, que determinada tecnologia leve à extinção de toda uma classe de trabalhadores, cujo ofício subitamente se torna ineficiente e obsoleto diante das novas possibilidades. Igualmente, não surpreende que uma nova tecnologia leve ao surgimento de novos mercados, gerando empregos e desenvolvimento econômico. Essa via de mão dupla acaba criando um mecanismo de equilíbrio que permitiu que o avanço tecnológico não tivesse impacto tão devastador sobre os postos de trabalho disponíveis quanto profetizavam os mais pessimistas.
Com efeito, o que se observa é que, desde o surgimento das primeiras civilizações, a inovação tecnológica sempre levou a um contínuo processo de substituição das funções desempenhadas por cada indivíduo dentro dos meios de produção. Assim, em tempos antigos, a agricultura e a pecuária foram responsáveis por ocupar a força de trabalho antes empregada no extrativismo, gerando ganhos de produtividade que viabilizaram o aumento populacional.
Mais recentemente, as revoluções industriais foram responsáveis pela transferência de boa parte da mão de obra para o setor terciário, ao mesmo tempo em que democratizaram o acesso a bens materiais. Já na atualidade, visualiza-se um contínuo processo de substituição de funções menos elaboradas por outras mais complexas dentro do setor terciário, que vem sendo acompanhado pelo fornecimento de produtos e serviços cada vez mais individualizados. Daí a tendência progressiva de especialização da mão de obra nos países globalizados.
Olhando para trás, se verifica que o mercado de trabalho esteve dividido, portanto, entre três principais setores: agricultura, indústria e serviços. Contudo, a análise da evolução da organização social e dos meios de produção ao longo da história nos leva a algumas perguntas inevitáveis: será que em algum momento esse ciclo de substituição de mão de obra vai se esgotar? O que poderemos fazer quando o ser humano não for mais capaz de se reinventar para encontrar novos usos às suas habilidades diante do surgimento de novas tecnologias? O que faremos quando surgirem tecnologias capazes de superar os seres humanos até mesmo na habilidade que sempre foi seu último refúgio de exclusividade, ou seja, sua capacidade cognitiva?
A última das questões propostas nos leva a um tema que, no geral, não vem sendo tratado com a seriedade que merece: a inteligência artificial. Embora seja um assunto ainda pouco difundido, algumas das mentes mais brilhantes da atualidade, como Stephen Hawking, Bill Gates e Elon Musk, já tratam como inevitável o surgimento de uma inteligência artificial capaz de igualar ou até mesmo ultrapassar a capacidade cognitiva humana. Aliás, não é a toa que o desenvolvimento da inteligência artificial já foi considerada como tão revolucionária para a humanidade quanto a descoberta do fogo e da roda.
Alguns sinais de tal acontecimento já podem ser vistos hoje em dia. Especificamente no universo jurídico, por exemplo, temos o supercomputador advogado ROSS, que utiliza o sistema Watson, desenvolvido pela IBM, e já foi “contratado” por diversos escritórios americanos para desenvolver – em muito menos tempo e a um custo muito menor – atividades típicas da advocacia moderna.
O exemplo de ROSS trouxe consigo algumas previsões promissoras e ao mesmo tempo assustadoras para esse mercado onde a especialização e a intelectualidade sempre predominaram. Da mesma forma, já se cogita estarem fadadas ao mesmo destino outras funções altamente especializadas como as de médicos, engenheiros e economistas, cuja substituição por máquinas era impensável até alguns anos atrás.
Em 2013, foi publicado o estudo The Future of Employment: How Susceptible Are Jobs to Computerisation?, por meio do qual pesquisadores de Oxford previram que, em vinte anos, 47% dos empregos nos Estados Unidos serão extintos. Dentro do mesmo estudo, calculou-se que operadores de telemarketing, corretores de seguros, assistentes jurídicos, garçons e guias de turismo possuem mais de 90% de chance de perderem seus empregos para algoritmos no curto espaço de duas décadas.
Acrescente-se a tal cenário o fato de que tais mudanças surpreendentes poderão nos atingir muito antes do que esperamos. Com efeito, pesquisas feitas recentemente com especialistas da área demonstram que mais de 50% deles acreditam que em menos de cinquenta anos surgirá uma inteligência artificial possuidora de capacidade cognitiva superior à humana.
Mas não é só a empregabilidade humana que será afetada com os avanços tecnológicos; na verdade, é muito difícil antecipar o impacto que uma tecnologia tão revolucionária provocaria em nosso mundo. Certamente não sabemos a resposta para essa questão, mas temos certeza que o Direito, talvez o maior mecanismo de pacificação social já inventado pelo homem, desempenhará importante função para garantir que tais inovações sejam introduzidas com responsabilidade e de modo a contribuir sempre em prol do bem comum.
É com o objetivo de colaborar nessa importante missão que esse espaço foi criado. O Direito da Inteligência Artificial será um campo onde serão debatidas as consequências do advento de novas tecnologias tendentes a substituir a atividade intelectual humana, e estudadas as possíveis alternativas de que disporá nossa sociedade para reagir diante de tão impactantes inovações. Afinal, não será tarefa simples resolver as inovadoras problemáticas por meio dos institutos já existentes ou simples analogias.
Apesar de a abordagem do assunto se desenvolver primordialmente a partir da perspectiva jurídica, é certo que será necessário recorrer com frequência a outras áreas do saber humano – tais como a economia, as ciências políticas e sociais, e a filosofia – para solucionar os desafios que serão enfrentados ao longo deste projeto.
Por: Daniel Becker e Pedro Lameirão