InsurTech: as novas tecnologias disruptivas no mercado de seguro
- Criado em 03/06/2019 Por LinkLei
Estado deve dedicar especial atenção às sensíveis questões que surgem à medida que as tecnologias avançam
Ao longo dos últimos anos, observa-se em todo mundo uma miríade de inovações tecnológicas que estão impactando, de maneira singular, a vida das pessoas. O diferencial destas inovações é que elas vão muito além de introduzir melhorias naquilo que já existe; elas causam verdadeira ruptura – daí porque designá-las “tecnologias disruptivas” – com os padrões tecnológicos já estabelecidos no mercado. Uber, Airbnb e Netflix são exemplos bem conhecidos dessa nova paisagem. O setor financeiro vive o “fenômeno FinTech”. E o setor de seguros saúda a chegada das chamadas InsurTechs.
O termo “InsurTech” decorre da combinação das expressões Insurance e Technology e está a referir as novas tecnologias que detêm o potencial de produzir inovações no setor de seguros. Essas inovações podem ser analisadas sob diversas perspectivas. Aqui vale a pena abordar três perspectivas: (i) do consumidor, (ii) das próprias InsurTechs e (iii) da regulação.
Sob a primeira perspectiva, observa-se que as InsurTechs buscam valorizar a experiência do consumidor mediante (i) a disponibilização de aplicativos para aparelhos celulares, (ii) o fornecimento de serviços on demand, (iii) a implementação de programas de recompensa, (iv) a triagem para seleção da apólice mais apropriada para diferentes tipos de negócios, (v) a comparação do preço das apólices comercializadas pelas mais variadas seguradoras, (vi) a realização de serviço de autovistoria de seguro automotivo a partir de fotografias tiradas pelo celular do próprio segurado, etc.
Tais iniciativas promovem, inegavelmente, o empoderamento do consumidor, rompendo com um modelo arraigado de comercialização de seguros em que as pessoas adquirem apólices por meio de corretores ou do modelo bancassurance1. Um dos grandes benefícios deste empoderamento é a criação (ou o fomento à criação) de um senso de responsabilidade no consumidor. Tradicionalmente, as pessoas confiam a terceiros a aquisição de uma apólice e dedicam pouca ou nenhuma atenção ao que recebem: um pedaço de papel, que raramente leem e ainda mais raramente compreendem. As novas tecnologias e o empoderamento que elas proporcionam têm o condão de envolver ativamente o consumidor no processo de escolha do seguro e até no próprio desenrolar da relação contratual, tornando-o de certo modo mais responsável.
Sob a perspectiva das próprias InsurTechs, é importante destacar que elas podem atuar no mercado de maneira independente, como uma empresa InsurTech (as chamadas startups), ou ser incorporadas à dinâmica empresarial de uma seguradora tradicional já estabelecida. Seja como for, as InsurTechs proporcionam o oferecimento de novos produtos e serviços, o que resulta na modernização do mercado securitário, no aumento de eficiências internas e na atração e retenção de consumidores.2
Tudo isso se torna viável a partir do surgimento, aprimoramento e utilização de tecnologias inovadoras tais como big data analytics, inteligência artificial, machine learning e algoritmos, que alteram a capacidade de coleta, armazenamento e análise de informações relevantes para a indústria do seguro.
Informação, como cediço, é um tema crucial para o bom andamento do negócio de seguros. Assim é que, quanto mais sofisticadas forem as práticas envolvendo a temática da informação, maiores condições terá a seguradora de realizar uma precificação eficiente do seguro, de empregar ferramentas de incentivo que visem à redução de riscos por parte de seus segurados, de auxiliar o segurado a mitigar perdas cobertas, de analisar corretamente as situações de exclusão, de combater fraudes, etc. É inegável, portanto, que as tecnologias inovadoras geram uma extensa rede de benefícios para as InsurTechs/seguradoras.
Bons exemplos dessa nova realidade são fornecidos por artigo publicado no site do The New York Times, datado de 10/04/2019. Intitulado Insurers Want to Know How Many Steps You Took Today, o artigo aponta algumas inovações tecnológicas que estão sendo utilizadas para ajustar prêmios e apólices com base em novas formas de vigilância: aplicativos para smartphones que medem quando você acelera e freia seu carro; algoritmo que analisa suas contas de mídias sociais para análise de comportamentos de risco; programa que calcula sua expectativa de vida utilizando o seu Fitbit ou Apple Watch. Essa avalanche de “novas informações” proporcionada por tais tecnologias promete mudar a face do seguro.
Finalmente, sob a perspectiva da regulação, o tema desperta muitos questionamentos e poucas certezas. O ritmo alucinante das inovações tecnológicas impõe ao Estado o desafio de acompanhar esse processo na tentativa de gerenciar os riscos que são criados no curso do desenvolvimento, produção e uso dessas tecnologias. Tal desafio afigura-se ainda mais sensível quando se está diante de uma indústria altamente regulada como é a de seguros. No caso, a Superintendência de Seguros Privados – Susep mantém constante vigilância sobre as três etapas da atividade econômica desenvolvida pelos agentes econômicos: a entrada no mercado, o funcionamento e a saída, voluntária ou compulsória.
Em mercados assim, é natural que o surgimento de novas tecnologias causem significativo estresse no modelo regulatório estabelecido, dando azo ao fenômeno da desconexão regulatória, que é “o rompimento entre o arcabouço normativo-regulatório e a realidade do setor regulado, exigindo do regulador a capacidade de identificar o referido problema para, em seguida, avaliar a eventual necessidade de se operar a reconexão regulatória, sob pena de se manter em vigência regras regulatórias obsoletas e incompatíveis com a nova dinâmica mercadológica advinda do processo inovador”.
A dúvida que remanesce é saber de que maneira o Estado deve regular essa nova e complexa realidade. Atualmente, observa-se que muitos países vêm lançando mão das sandboxes regulatórias, que consiste na delimitação e implantação de um ambiente regulatório controlado dentro do qual as empresas podem testar suas inovações em condições reais, ficando sujeitas a regras desenhadas especificamente para este ambiente.
No caso específico do setor de seguros, o benefício para as empresas residiria no fato de que elas permaneceriam isentas temporariamente das rígidas normas que permeiam este subsistema regulado. Já para a Susep o benefício consistiria na possibilidade de avaliar, em condições reais, os riscos inerentes a determinada inovação.
Essa parece ser a solução em vias de ser adotada no Brasil. Em entrevista concedida ao jornal Valor Econômico, publicada em 14/05/2019, a Superintendente da Susep, Solange Vieira, afirmou que, em relação às InsurTechs, está em discussão a possibilidade de fazer uma regulação por segmentação, de acordo com a estrutura da seguradora. Nas suas palavras: “E quando eu falo de regulamentação segmentada, o chamado ‘sandbox’, é podermos permitir a empresa pequena nascer dentro desses mercados e ter isenções temporárias de regulamentação. Será muito importante para o dinamismo da economia”.
Seja qual for a escolha regulatória, acredita-se que um dos desafios mais significativos da Susep envolverá a decisão sobre como e quando regular a discriminação feita pelas seguradoras em tempos de inteligência artificial, big data e algoritmos, discussão esta que se tornará ainda mais relevante e urgente diante do fato de que a Lei Geral de Proteção de Dados entrará em vigor no país no próximo ano.
Alguns mercados mais maduros, como o norte-americano, já debatem os limites que devem ser impostos às seguradoras ao classificarem os indivíduos de acordo com a enorme quantidade de informação que conseguem coletar. Um exemplo dado pela literatura evidencia o que está em jogo: pode uma seguradora de seguro de vida elevar, a partir de um modelo de inteligência artificial, o valor do prêmio do seguro de determinado segurado que visitou o site de uma organização que realiza testes grátis para mutações no gene BRCA, altamente preditivas de certos tipos de câncer?
Muitas outras situações já despertam atenção, como por exemplo o fato de que o Facebook utiliza inteligência artificial para tentar prever o suicídio de seus usuários.
As inovações tecnológicas rompem com modelos consagrados na sociedade. Para o bem e para o mal. No setor de seguros, dada a sua essencialidade para a sociedade – basta lembrar que existem atividades que só podem ser realizadas mediante a contratação de seguro –, o Estado deve dedicar especial atenção às sensíveis questões que surgem à medida que as tecnologias avançam, decidindo o que deve ir para as prateleiras e o que deve ficar no laboratório.
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PÉRICLES GONÇALVES FILHO – Sócio de Navega Advogados Associados, Mestre em Direito da Regulação pela Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getulio Vargas, Visiting Researcher na Universidade da Califórnia – Irvine e Vice-presidente da Comissão de Direito Público da OAB/RJ.