Como os criptoativos podem impactar o sistema financeiro atual?
- Criado em 08/07/2019 Por LinkLei
O futuro parece empolgante para os amantes de inovação
Na última semana o Facebook anunciou seus planos para o setor de serviços financeiros com o lançamento da Libra, nova moeda global baseada em blockchain, na tentativa de garantir um sistema financeiro mais acessível e com baixo custo. A Associação Libra, um esforço de diversas empresas do setor de meios de pagamentos, tecnologia, telecomunicações, blockchain, venture capital e organizações multilaterais, pretende liderar os esforços para garantir inclusão financeira em todo o mundo por meio da tecnologia de blockchain. Ao criar uma criptomoeda acessível e barata para os consumidores, a iniciativa pretende cumprir a promessa de “internet do dinheiro”.
Sob o ponto de vista dos consumidores a Libra nos parece ser a iniciativa mais promissora em criptomoedas e com boas perspectivas para alcançar seus objetivos de redução de custos e escalabilidade. Todavia, é importante tocar em alguns pontos que nos parecem relevantes sobre os criptoativos e a nova economia do dinheiro.
Criptoeconomia e o Papel dos Bancos Centrais
Os economistas não consideram as criptomoedas como sendo moedas no sentido técnico e econômico do termo pelo simples fato de não serem moedas fiduciárias e não terem curso forçado nos países. Desde 1933, a maior parte dos países abandonou o padrão-ouro. As moedas nacionais deixaram de ter valor intrínseco e passaram a ser moedas fiduciárias. Ou seja, o valor da moeda está na nomenclatura atribuída pelo Estado, seu correspondente curso forçado e a crença na capacidade do país fazer jus ao volume de emissões . Além disso, logo após 1933, um fenômeno interessante ocorreu com os Bancos Centrais dos países que adotaram a moeda com caráter fiduciário. O meio circulante deixou de ser contabilizado como passivo exigível e passou a ser passivo não exigível, significando que agora a moeda não tinha mais equivalência com a quantidade de ouro existente nos cofres dos Bancos Centrais. Não havendo mais padrão ouro, não fazia mais sentido ter o meio circulante como um passivo exigível.
Com a crise de 2008, os Bancos Centrais que apresentavam patrimônio líquido negativo fizeram esforços para integrar a conta “meio circulante” na conta “patrimonial”. O objetivo era demonstrar que os Bancos Centrais são instituições detentoras do poder de emissão de moeda e, desta forma, deveria ser contabilizada como patrimônio.
O surgimento dos criptoativos guarda relação com a moeda fiduciária. Apesar de não terem curso forçado como as moedas emitidas por Bancos Centrais, os criptoativos tem característica de passivo não-exigível emitido como forma de financiamento pelos emissores (quando feitos na modalidade de tokens via ICOs).
De uma forma simplificada os economistas dividem os meios de pagamentos entre quatro grupos (M1, M2, M3 e M4), de acordo com a liquidez de cada um. O M1 é compreendido pela soma de moeda em poder do público e os depósitos à vista no sistema bancário. O M2 é a soma do M1 juntamente com os depósitos à prazo (neste caso, incluindo os depósitos para investimentos, fundos de renda fixa de curto prazo e parte dos títulos públicos que não estão em poder dos bancos e de fundos de investimentos). O M3 é a soma do M2 com os depósitos da poupança. O M4 é a soma do M3 com os títulos públicos em favor dos bancos e fundos de investimentos, além dos títulos privados como letras hipotecárias e letras de câmbio.
A principal função de uma moeda, seja ela de caráter fiduciário ou com lastro em algum objeto, é a de transmitir informações corretamente, conforme defendido por Friedrich Hayek.
Com o advento do lastro em moedas preciosas escassas que tenham valor reconhecido mundialmente, como o ouro, era possível saber exatamente quanto valia cada papel moeda impresso, já que esse era sempre um valor correspondente em ouro, e podia ser trocado pelo metal precioso diretamente no Banco Central.
Por outro lado, com a modificação do lastro das moedas para um caráter fiduciário, a capacidade do cidadão comum de prever abusos governamentais com a impressão acima do suportado monetariamente, acaba por criar uma tendência de inflação e dúvida sobre o valor real da moeda.
Apesar de a criação do caráter fiduciário das moedas ter representado um avanço muito grande na nossa organização como Estado, não podemos nos olvidar da necessidade de mantermos uma política monetária lógica e que todos possam verificar a sua saúde.
O surgimento de criptoativos como a Libra ou o Bitcoin fazem com que o sistema fique mais complexo e a definição tradicional acima descrita passe a ter que ser refeita (ou adaptada) tendo em vista as inovações financeiras e os novos meios de pagamentos. Além disso, há quem entenda que as criptomoedas seriam um subsistema de pagamentos, pequeno se comparado ao volume transacionado pelos meios mobile, digital, em arranjos abertos ou arranjos fechados.
Como irá funcionar a Libra?
Apesar de ter sido noticiado em diversos meios que a Libra era a moeda do Facebook, na realidade, ela pertence a uma associação chamada “The Libra Association” (A Associação Libra), composta por diversas empresas do mundo de tecnologia e pagamentos, dentre elas as duas principais bandeiras de cartões de crédito.
Cada um dos membros da associação aportou um valor mínimo de 10 milhões de dólares para terem a possibilidade de se tornarem membros fundadores da associação, devendo a “chefia” ser iniciada pelo Facebook, e rotacionada entre os membros fundadores ano a ano.
As decisões sobre o futuro da moeda serão decididos através de uma conselho criado pela associação e, até o momento, diversos fatos são fundamentais de serem ressaltados. Em primeiro lugar, a Libra é uma moeda lastreada em uma cesta de ativos que eles consideram de baixa volatilidade, incluindo depósitos dos valores arrecadados em poupanças e compras de títulos de dívidas de países com baixo potencial de problemas econômicos. Assim, a principal função, segundo defendido no seu White Paper1, é a de fornecer a pessoas que não tem acesso a bancos em seus países de origem, uma alternativa oferecida pelo próprio Facebook. Em outras palavras, se trata efetivamente da criação de um Banco com capacidade de atuação mundial, que poderá ser utilizado mesmo que, devido ao massivo número de usuários das empresas envolvidas, não haja tácita aprovação nos países.
Nesse ponto, a Libra se assemelha ao Bitcoin pelo fato de ambas serem baseadas na tecnologia Blockchain, possibilitando transparência nas transações, enquanto evita a necessidade da criação de custos relativos a contratos de câmbio. Por ser uma moeda que tem valor intrínseco, já que é lastreada em operações financeiras já consolidadas e de confiança do mercado mundial, a moeda pode ser facilmente comprada e vendida em qualquer país, sem que haja necessidade de registro de empresa localmente. Essencialmente, a Associação Libra está criando seu próprio Banco Central, que provavelmente vai ter mais clientes do que a maioria dos Bancos Centrais de economias onde a saúde moeda não é vista com confiança.
Para aceitar pagamentos em Libra, basta utilizar um dos manuais de suporte ao desenvolvedor, utilizando a linguagem “Move” para projetos mais complexos, e as soluções já criadas para websites de pequeno porte e prestadores de serviços. Isso significa que é possível que um website ou comerciante comece a aceitar as moedas do Facebook através de uma pequena modificação na sua máquina POS no futuro, ou ainda no seu website. Será possível, ainda, criar projetos mais complexos, onde a Libra seria utilizada como meio de pagamento, com funções diversas e autônomas, mas ainda sendo confirmadas dentro da blockchain da Libra.
Em segundo lugar, há diferenças entre a Libra e o Bitcoin, pois a primeira não tendente às mesmas flutuações de preço que o Bitcoin, devido ao fato de estar lastreada em uma variedade de ativos focados em fazer com que o valor da moeda se mantenha o mais estável possível. A idéia com isso é a de permitir uma maior adoção por pessoas no seu dia a dia, sem que haja os riscos que uma alta volatilidade pode gerar.
A Associação Libra também está aceitando novos membros ao custo de 10 milhões de dólares. Por esse valor, você terá direito a um assento e um voto no Conselho da Associação. Segundo o grupo, o objetivo com a adesão de novos membros é tornar a solução o mais democrática possível, sem que ninguém tenha a possibilidade de abusar o controle da moeda.
Um terceiro ponto relevante é que o Facebook está disponibilizando a sua carteira digital para guardar suas Libra Coins, chamada CaLibra. A Associação Libra garante que não estará envolvida com o processamento de transações e nem com a guarda de dados pessoais dos clientes. Transações serão processadas pelo que eles chamam de Node de Validação (Validation Node).
Apesar de não conter dados específicos de usuários em suas transações, a blockchain salvará metadados como o horário da adesão da operação na Blockchain da Libra e o Node de Validação (Validation Node). Dessa forma, apesar de garantir parcial privacidade, assim como o Bitcoin, através do rastreio das transações e das informações contidas nos metadados, não deveria ser complicado para as autoridades identificarem os autores de certas transações e até mesmo efetivar o confisco de carteiras através da solicitação judicial diretamente à empresa responsável pela CaLibra.
De fato, a dificuldade da identificação vai depender da quantidade de informação que o serviço contratado solicitou quando você utilizou a moeda como meio de pagamento. Através do rastreio dos nodes e do requerimento judicial de dados relativos àquele endereço, seria possível, em tese, inclusive abusar do cumprimento de ordens judiciais, ao seguir o fluxo do capital entre diferentes nodes, através dos dados disponibilizados publicamente na blockchain da Libra.
Agora, com diferentes empresas ao redor do mundo criando carteiras digitais que sejam capazes de aceitar Libra, e ela se tornando um meio de pagamento amplamente aceito online e offline, eles agirão cada vez mais como bancos globais, permitindo qualquer usuário manter uma conta em países diferentes e usar uma moeda estrangeira em diferentes países.
No final, a Libra deve ampliar vertiginosamente o uso de criptomoedas e a colocar em cheque os Bancos Centrais de todo o mundo, já que agora, com a proteção das leis Suíças, será quase impossível para um governo conseguir banir ou criar regulação sobre essa nova moeda.
Por fim, vale uma reflexão sobre o papel do Brasil no cenário global de atração de investimentos de “internet of money”. Se quisermos ser um hub global que atraia novas iniciativas em criptomoedas será necessário flexibilizar diversas regras regulatórias que hoje impedem a criação dessas empresas no Brasil. Podemos ter um futuro diferente onde o ambiente de inovação possa estar em diversas regiões do país com a criação de novos Facebooks ou Amazons. Por outro lado, caso nada seja feito para atrair novos negócios da economia digital, é possível que vejamos um fluxo migratório de investimentos para outros países, como Suíça e Singapura.
De qualquer forma, o futuro parece empolgante para os amantes de inovação.
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1 Disponível em: https://libra.org/en-US/white-paper/
DANIEL SIVIERI ARRUDA – Sócio da área bancária e mercado de capitais do Schmitt Advogados e pesquisador do CPDE/FGV.
PAULO CESAR DE MEIRELES GARCIA JR – Empreendedor serial e fundador do Hotelli Corporate. Foi membro do Conselho de Administração do Hotel Urbano.