Como construir uma carreira em advocacy
- Criado em 14/06/2019 Por LinkLei
Minha paixão era política. Queria trabalhar por isso. Negociação, tolerância e persistência são fundamentais
A formação em Ciências Sociais é uma delícia, mas tem seus custos. A carreira profissional projetada para aqueles que se dedicam ao estudo de Sociologia, Antropologia e Ciências Políticas – tripé das Ciências Sociais no Brasil – é essencialmente voltada para a vida acadêmica, o que não é um problema em si, mas a mim sempre representou uma limitação.
Lembro-me até hoje quando nos idos de 2005 procurava estágios em portais de emprego na internet e digitava as palavras-chave “ciências sociais”. A angústia da tela branca dos resultados não era pequena para um jovem à procura de iniciar sua carreira.
Com as portas estreitas no mercado e a fim de produzir fora do circuito acadêmico, fui tentar a sorte naquilo que chamavam de “empreendedorismo cívico”. Que não é propriamente uma área para a qual você se candidata; tem mais a ver com as coisas que você quer criar, grupos que você pretende reunir, ideias que você quer lançar no mundo.
Empreender é um termo estranho quando aplicado às ciências sociais. Não fomos treinados a experimentar fora da academia. Talvez por dentro das instituições sim: movimentos estudantis, centros acadêmicos, sindicatos e partidos compõem um ambiente de aprendizagem e exercício político para cientistas sociais; mas observar o cenário político, encontrar brechas e conceber um projeto político do zero costuma estar fora de cogitação.
Minha primeira experiência nessa área foi no Oásis Santa Catarina, um movimento que levou 300 jovens do país inteiro a reconstruir as áreas públicas afetadas pelas enchentes no estado em 2008. Eu estava lá, um tanto descrente das possibilidades profissionais da academia, e de repente vejo esse chamado. Eu atendi e isso fez toda diferença. Para além da assistência e do voluntarismo, havia ali uma engenharia de mobilização e de engajamento da própria população local na reconstrução dos espaços que me chamou muita atenção: “então quer dizer que dá para chamar uma galera e tentar resolver as coisas por nós mesmos, hm… então tá!”
Mas a minha paixão era política. Queria trabalhar por isso.
Após concluir minha graduação, decido ir fazer o único mestrado que me interessava naquele momento. Era na França, na minha área de formação e com a curiosa ênfase em Influência Social. Lendo a ementa do curso descobri que estudaria movimentos sociais, campanhas de opinião pública, psicologia social, processos de democracia participativa e deliberativa no mundo. Fui e na volta ao Brasil, em 2012, um amigo me chama para ajudar na construção de um movimento por uma reforma política no país.
O Eu Voto Distrital (EVD) fora criado em 2011 e propunha uma mudança no sistema eleitoral como forma de resolver a crise de representatividade que já pairava no Brasil naquele momento. Foi no EVD que aprendi o bê-a-bá sobre o que é empreender politicamente. Abrir um CNPJ, redigir um estatuto, desenhar um modelo de negócios (sim, isso existe mesmo quando você depende de doações), planejar campanhas, mobilizar nas redes sociais e para ações públicas. Aprendi também a programar, editar vídeos, usar photoshop. Dei minhas primeiras palestras e entrevistas. Existe todo um fetiche meio juvenil em torno do empreendedorismo, mas para quem realmente faz isso – não apenas nos palcos – há muito aprendizado.
Tudo que aprendi nessa primeira experiência, foi colocado à prova quando fui escalado para o Bom Senso FC. O BSFC foi um movimento capitaneado por atletas de diversas divisões do futebol brasileiro em defesa da modernização e da democratização das instâncias de governança no esporte. Tive a honra de trabalhar na condução estratégica do movimento, nas interfaces com atores políticos diversos e muitas vezes concedendo entrevistas em nome do grupo. Aquilo que se iniciou como um movimento que fazia protestos no gramado foi ganhando densidade política e capacidade de advocacy. Pouco mais de dois meses depois da minha chegada e já estávamos em reuniões com atores importantes de diversos segmentos do futebol. Depois passamos a nos dedicar à realização de estudos e produção de propostas efetivas para a melhoria do futebol brasileiro.
Quando tomamos o 7 a 1 em casa, na Copa de 2014 e o país todo se pôs a coçar a cabeça, perguntando “que diabos aconteceu com o futebol brasileiro e como fazer para superar essa crise?”, poucos grupos tinham tanta relevância política e propostas tão concretas quanto o BSFC. Era preciso ouvir os atletas. E a partir disso, estreitamos o trabalho de articulação com o governo federal e parlamentares de diferentes partidos pela aprovação do PROFUT, projeto que, como contrapartida ao refinanciamento da dívida fiscal dos clubes, exigia novos parâmetros de gestão, transparência e governança a todas as entidades aderentes.
A disputa política em torno do Bom Senso FC tornou a participação dos atletas no projeto muito custosa e terminou por inviabilizá-lo. Com seu fim, passei a me dedicar à criação e desenvolvimento de novos projetos. A Virada Política, evento de inovação e incidência política que acontece anualmente em São Paulo e outras cidades do Brasil; o Transparência Partidária, movimento que apresenta propostas e estudos para oxigenar e dar transparência aos partidos políticos brasileiros; o Advocacy Hub, coletivo de profissionais de diversas áreas que visa democratizar o conhecimento sobre advocacy para o terceiro setor.
Até que, no início de 2018, com a escalada das tensões políticas por todo o país e a série de eventos gravíssimos que passaram a ameaçar a democracia brasileira — lembrando: o assassinato de Marielle Franco, a greve dos caminhoneiros, os tiros na caravana de Lula e as insinuações de intervenção militar sobre julgamentos no Supremo Tribunal Federal — lá fui eu me debruçar sobre um novo projeto. Passei a me dedicar à criação do Pacto pela Democracia. A partir desse diagnóstico compartilhado dos riscos que se impunham sobre o regime democrático, um grupo plural de organizações, movimentos e coletivos da sociedade decidiu se reunir e convocar atores políticos e cidadãos para expressar seu compromisso com a democracia.
Formou-se assim uma plataforma de ação conjunta pela defesa e revigoramento da democracia no Brasil, somando mais de 100 organizações e tendo o compromisso de mais de 250 candidatos ao longo das eleições. Hoje, atuamos principalmente em busca de fortalecer a articulação de redes e de ação conjunta na sociedade civil e no universo político em defesa da institucionalidade e da cultura democrática. Nossa última atuação foi no enfrentamento da medida provisória proposta pelo governo Bolsonaro de interferir na atuação das organizações da sociedade civil.
É nesta que estou hoje. E a tudo isso chamo de advocacy.
Trabalhar nessa área me permitiu explorar múltiplas competências e, mais que isso, me deu liberdade para criar projetos, campanhas e coalizões que de fato incidissem em políticas públicas e legislativas. Esse campo de atuação me permitiu pensar e propor outros caminhos para participação social, construir pontes e promover diálogos na sociedade, algo que, se estivesse no mercado ou na academia, dificilmente conseguiria fazer.
Por fim, como dica para aqueles que desejam trabalhar nessa área, em Advocacy, não existe “eu sozinho”. Todos os projetos que fiz foram coletivos. A principal competência que desenvolvi nesses anos foi capacidade de articulação: conversar, consultar e agregar pessoas. A disposição para a construção conjunta, a negociação, a tolerância com o contraditório e a persistência são quesitos fundamentais para quem quer trabalhar com incidência política – sobretudo nos tempos de hoje.
RICARDO BORGES MARTINS – Cientista social pela USP, mestre em Influência Social pela Université d'Aix-Marseille, pós-graduado no MBA de Relações Governamentais da FGV e coordenador-executivo do Pacto Pela Democracia