Caminhos para contratação de soluções inovadoras por empresas estatais
- Criado em 17/07/2019 Por LinkLei
Especificações técnicas devem focar no problema a ser resolvido
e nos resultados esperados
1. O PARADIGMA DA ESPECIFICAÇÃO: O PULO DO GATO
O avanço tecnológico dos últimos anos fez com o que o Estado enfrentasse desafios não apenas para exercer sua função regulatória, mas também para incorporar nas suas entregas à sociedade a eficiência que as inovações tecnológicas são capazes de prover.
A rigidez da legislação e do controle sempre foram críticas comuns dos advogados e gestores que lidam com contratações públicas, e pode-se dizer que essas críticas aumentaram de intensidade na mesma proporção com que as inovações tecnológicas ofertavam soluções que a administração pública não conseguia interiorizar.
Não é exagero afirmar que há dois consensos entre os gestores públicos e o ecossistema de inovação: i) a complexidade e o dinamismo das soluções inovadoras não são capturáveis pelas tradicionais ferramentas jurídicas dos processos licitatórios; 2) o gap de eficiência entre o setor público e o privado tende a aumentar exponencialmente caso a sistemática das contratações públicas não seja reformulada.
É imperiosa, portanto, a construção caminhos jurídicos não apenas céleres mas também flexíveis, para que suas atualizações possam acompanhar o ritmo evolutivo do ecossistema de inovação.
O “pulo do gato” para destravar as contratações de soluções inovadoras pela administração pública nos parece estar numa mudança de paradigma nas protagonistas das licitações: as especificações técnicas. Elas devem passar a detalhar o problema e não na solução.
Para a contratação de soluções inovadoras, deve ser redirecionado para a fase externa o esforço hoje feito na fase interna da licitação: mapear o mercado, avaliar as soluções disponíveis e escolher a mais adequada.
Isso porque, quando bem feito, esse exercício de especificação na fase interna demanda muito tempo ($) e quase sempre culmina numa especificação de solução inovadora “ultrapassada” (cada vez mais inevitável diante do dinamismo das inovações). Quando mal feito, a especificação não é capaz de capturar as boas soluções e afastar as ruins (que tendem a ganhar os certames por serem mais baratas).
Assim, um edital que especifique o problema e os resultados esperados com a contratação, e deixe o conhecimento e avaliação das soluções inovadoras existentes no mercado para a fase externa é duplamente mais eficiente: i) otimiza o esforço ($) da fase interna; ii) aumenta a probabilidade de contratação da melhor solução disponível no mercado.
Soma-se ao duplo ganho de eficiência o aumento da transparência e da participação social nas decisões da administração pública, pois o mapeamento do mercado e a escolha da melhor solução para o problema serão feitos na fase externa do certame, num procedimento público e participativo.
A lógica aqui defendida já é utilizada em alguns procedimentos realizados pela administração pública, muitos configurados como “desafios” (enquadrados sob a modalidade concurso), destinados a identificar soluções inovadoras para problemas descritos no edital (a mais famosa dessas iniciativas foi o PitchGov do Governo de São Paulo). Em regra, esses procedimentos são exitosos na identificação de boas soluções, mas encontram muitas dificuldades para concretizar a contratação da solução vencedora.
A mudança de paradigma defendida neste é artigo é justamente para que seja formatado um procedimento licitatório, nos moldes dos “desafios”, que de destine não apenas a identificar ou premiar a melhor solução para o problema exposto no edital, mas, sobretudo, a contratá-la no ao final do certame.
2. O REGULAMENTO DE LICITAÇÕES DAS ESTATAIS E SEUS CAMINHOS
A Lei 13.303/2016 deliberadamente deixou relevante liberdade normativa para as estatais, seja pela redação do seu art. 40 seja pela sua baixa exaustividade quando comparada à lei que veio substituir (Lei 8.666/93).
A junção da delegação legal expressa com o caráter não exaustivo da Lei 13.303/2016 concede ao regulamento de licitações das estatais um espaço legítimo para normatizações específicas e inovadoras, conforme ressalta Alexandre dos Santos Aragão1:
O art. 40 do Estatuto atribui um relevante poder normativo às estatais (note-se: para as estatais, não para o Executivo central) para regulamentarem, ou seja, detalharem e interpretarem de forma geral e abstrata alguns dispositivos em seu âmbito. Essa regulamentação pelas próprias estatais já possuía um precedente no art. 119 da Lei 8.666/93, mas que não possuía maior relevância prática em razão da Lei 8.666/93 ser tão exaustiva que não deixava muito espaço para regulamentações.
(…)
Esse poder regulamentar das estatais pode legitimamente construir um espaço de inovação e potencialização das normas mais modernas trazidas pelo Estatuto. (grifamos)
Em recente dissertação de mestrado2, tivemos a oportunidade de analisar detalhadamente o regulamento de licitações de sete estatais federais (BASA, BB, BNB, BNDES, CEF, FINEP, PETROBRAS), com a finalidade de averiguar como elas preencheram esse espaço normativo. A pesquisa dissecou cada artigo e parágrafo dos regulamentos, e seus achados foram altos índices de repetição legal (cópia do texto legal), de importação legal (cópia de norma não aplicável às estatais), de procedimentalização (que pode representar alta burocratização) e baixíssimos índices de inovação (conceito ou procedimento inédito na legislação).
Entendemos, portanto, que há no Estatuto das Estatais caminhos legítimos a serem explorados para viabilizar a contratação de soluções inovadoras por licitação. Cabe ao regulamento de licitações das estatais o estabelecimento das suas sistemáticas e ritos. Não há nenhum fundamento jurídico para que a lógica da Lei 8.666/93 seja perpetuada.
A sistemática jurídica do Estatuto das Estatais permite que seja configurada como uma licitação capaz de entregar um contrato a lógica aqui defendida: focar na especificação do problema e dos resultados esperados e deixar para a fase externa o conhecimento das soluções e a escolha da mais vantajosa.
Para tanto, podem ser utilizados os critérios de julgamento “melhor técnica”, “técnica e preço” e “maior retorno econômico”, cujos procedimentos não foram exauridos pelo texto legal, o que, conforme o art. 40 do Estatuto, deve ser feito pelo regulamento de licitações.
3. CONTRATAÇÃO RELACIONADA AO DESEMPENHO DA ATIVIDADE SOCIAL E/OU OPORTUNIDADE DE NEGÓCIO
Outro importante caminho que o legislador pavimentou para incrementar a eficiência das estatais está contido no §3º do art. 28 da Lei 13.303/2016.
O legislador agiu na direção da segurança jurídica para clarear o incessante debate “atividade-fim x atividade-meio” ao prever como causa de afastamento da incidência do regime jurídico de licitação a execução de atividade prevista no objeto social da estatal ou a concretização de oportunidades de negócio (definidas no §4º). Essas contratações estão posicionadas no regime jurídico de direito privado, por estarem na esfera de atuação mercadológica das estatais.
O jurista Alexandre Aragão (2018) defende que a ausência de licitação se aplicará a todo e qualquer contrato estrategicamente relevante para a estatal em um mercado competitivo, e cita outros importantes juristas que comungam desse entendimento3.
O Tribunal de Contas da União já teve a oportunidade de se manifestar duas vezes sobre esse ponto do Estatuto das Estatais, e deve-se elogiar sua atuação em prestígio à eficiência perseguida pelo legislador. Nos Acórdãos 2033/2017 e 2488/2018 o TCU estipulou requisitos que não limitam a abrangência do dispositivo legal, estão em consonância com a doutrina especializada e reconhecem a legitimidade de procedimento isonômico (diferente de licitação) para efetivar a seleção do contratado.
Assim, nos casos em que a estatal entender que a futura contratação pode ser enquadrada em algum dos incisos do §3º do art. 28 do Estatuto, ela poderá publicar edital de chamada pública que exponha o problema e os resultados esperados para procedimentalizar a seleção da solução inovadora e do contratado.
4. ERRAR É PRECISO (MAS COLOQUE NA MATRIZ DE RISCOS)
Contratar é preciso, errar também é preciso. Sem duplo sentido. O ecossistema de inovação lida tão bem com erros e incertezas que um dos seus lemas é “erre, mas erre o mais rápido possível”. O que interessa é aprender com o erro, e rápido.
Essa é uma lógica incompatível com a cultura vigente na administração pública, que, para se conectar com o ecossistema de inovação, precisa atualizar seus aplicativos culturais para naturalizar o erro, onipresente em qualquer atividade humana, sobretudo nas inovações.
A Lei 13.303/2016 conferiu às estatais mais uma eficaz ferramenta: a matriz de riscos. Como a única saída para afastar totalmente os riscos inerentes às soluções inovadoras é não contratá-las (e isso não nos parece ser uma opção), é necessário que a matriz de riscos seja amplamente utilizada para expor as incertezas, alocar as responsabilidades e aumentar a segurança jurídica da contratação.
5. HABILITAÇÃO
Como o ecossistema de inovações é formado em grande parte por startups, é necessário que as exigências habilitatórias sejam calibradas para que não inviabilizem a participação daquelas que possuam boas soluções inovadoras mas que não cumpram as condições usualmente exigidas nos editais de licitação.
A redação do art. 58 da Lei 13.303/2016 determina que a habilitação seja apreciada exclusivamente pelos critérios ali elencados. Ocorre que a lógica da Lei 8.666/93 ainda é onipresente nos editais das estatais (atestados, balanços registrados, certidões).
É vantajoso eliminar um licitante que não possui um atestado de qualificação técnica mas que pode comprovar a aptidão da sua solução por um teste ou prova de conceito?
A lei fala apenas em “capacidade econômica e financeira”. O balanço registrado é a única forma de comprovação?
Para o mercado de inovação, a lógica deve ser a de flexibilização das condições de habilitação e postergação de comprovações definitivas para o momento de assinatura do contrato. É necessário maximizar a aplicação do art. 58 em prol da instrumentalidade procedimental da licitação.
Somente com sensibilidade a administração estará se alinhando com o ecossistema de inovação, sobretudo para tornar as licitações um vetor favorável, e não contrário, da aceleração e da tração das startups.
6. CONCLUSÃO
A contratação de soluções inovadoras pelas estatais demanda uma mudança de paradigma: as especificações técnicas devem focar no problema a ser resolvido e nos resultados esperados. A melhor solução para o problema deve ser conhecida e avaliada na fase externa do certame, mediante critérios previamente definidos e julgamento justificado por comissão tecnicamente capacitada.
A Lei 13.303/2016 deu às empresas estatais a legitimidade normativa para positivar em seu regulamento sistemática procedimental capaz de contratar soluções inovadoras por licitação, sendo necessário, para tanto, que elas internalizem características do ecossistema de inovação, dentre as quais não estão a burocratização e a aversão a riscos.
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1[1] Aragão, Alexandre dos Santos de. Empresas estatais: o regime jurídico das empresas públicas e sociedade de economia mista. 2ª Ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2018.
2[1] “Regulamentos de licitações editados sob a Lei 13.303/2016: instrumentos de inovação ou de repetição?”, disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/27262
3[1] Floriano de Azevedo Marques Neto, Carolina Barros Fidalgo, Carlos Ari Sundfeld, Rodrigo Pagani de Souza e José Vicente Santos de Mendonça
Pedro Ivo Peixoto – Mestre em Administração Pública. Pós-Graduado em Direito Administrativo Empresarial. Advogado do BNDES.