AUTOMATIZAÇÃO DE INVESTIMENTOS E O USO DE BIG DATA NO MERCADO DE CAPITAIS: PERSPECTIVAS E REGULAÇÃO
- Criado em 09/08/2019 Por LinkLei
Em seu clássico artigo “Efficient Capital Markets: a Review of Theory and Empirical Work”, publicado em 1970 no Journal of Finance, o economista norte-americano Eugene Fama defende a teoria dos mercados eficientes, segundo a qual o preço dos ativos no mercado de capitais seria um reflexo exato das informações disponíveis a respeito das companhias emissoras [1].
Ocorre que Fama repartiu seu nobel de economia, em 2013, com o acadêmico de Yale Robert J. Shiller, o qual, por outro lado, é um dos expoentes da economia comportamental (behavioral economics). Em detrimento à hipótese dos mercados perfeitos, esta corrente, popularizada pelo professor da Universidade de Chicago Richard Thaler [2] – que ganhou o mesmo prêmio, quatro anos depois -, recorre à psicologia e à sociologia para compreender que riscos possuem maiores impactos do que ganhos sobre os indivíduos e reconhece a racionalidade limitada dos seres humanos, apontando falhas de mercado [3].
Afinal, o mercado de capitais é composto por pessoas. Sejam os investidores pessoa física – no Brasil, ainda em pequeno número, se comparado ao total de investidores institucionais e estrangeiros atuantes no mercado [4] – ou os indivíduos por trás de agentes econômicos que dele fazem parte, tais como agentes de investimento, analistas e traders, o capital humano é fator determinante para o funcionamento de tal estrutura de aproximação dos agentes deficitários e superavitários.
Contudo, o uso de inteligência artificial – IA por instituições financeiras promete mudar, ao menos em parte, esse cenário e introduzir novas formas de tomada de decisão para alocação de recursos, focadas no uso de dados que permitam identificar o perfil do investidor através de uma análise de seu histórico e voltadas principalmente para os investidores-consumidores.
De acordo com o relatório de pesquisa sobre novas tecnologias no mercado divulgado pela Núcleo de Inovação em Tecnologias Financeiras – FinTech Hub [5] da Comissão de Valores Mobiliários – CVM, tal prática de consultoria financeira automatizada, conhecida como automated advice ou robo-advisors, já é uma das mais utilizadas pelos 80 empreendimentos de inovação financeira entrevistados pela Autarquia, quando comparada a outras tecnologias disruptivas com potencial de implementação no mercado de capitais, tais como crowdfunding, criptomoedas e blockchain [6].
Novos horizontes para a IA financeira
A assessoria financeira automatizada é, na realidade, de uma tendência global. Nos Estados Unidos, em 2019, os investimentos administrados por robôs, em 2019, totalizam um valor aproximado de US$ 750 milhões e a expectativa, de acordo com o relatório “United States Robo-Advisory Market (2015-2023)”, é de que esse mercado assista a um crescimento de dois dígitos até o início da próxima década [7]. Na Europa, já existem diversos robo-advisors – a maioria deles, disponível na Alemanha e no Reino Unido e voltada para investimentos em fundos de índice (Exchanged Trated Funds – ETFs), que envolvem a gestão passiva dos recursos [8]. Ademais, conforme indicado em estudo sobre o tema publicado pelo Banco Mundial em fevereiro deste ano, essa tecnologia também já está sendo implementada em países asiáticos, como China, Japão e Singapura, e africanos, apesar de o ser com menor expressividade [9].
Nesse sentido, algumas entidades do mercado de capitais global vêm se posicionando sobre o crescimento do uso de robôs investidores, reconhecendo seu potencial de inclusão financeira e apontando desafios para sua regulação. Vale destacar, por exemplo, o Relatório Conjunto de Resultados do Monitoramento de Consultoria Financeira Automatizada, publicado em 2016 e atualizado em 2018 pelas Autoridades Europeias de Valores Mobiliários, Bancos e Seguros, segundo o qual, apesar desse tema merecer acompanhamento, o uso de robo-advisors ainda irá demorar para efetivamente se consolidar entre investidores [10]. No mesmo ano, a Autoridade Reguladora Financeira do Reino Unido (Financial Conduct Authority – FCA) publicou artigo destacando que as empresas que ofereçam serviços de investimentos automatizados no país devem se ater às regras de transparência aplicáveis aos participantes do mercado e elaborar relatórios detalhados aos clientes para garantir que o investimento sugerido pela inteligência artificial é adequado a cada tipo de investidor [11].
No Brasil, existem 5 principais fintechs (Vérios, Magnetis, Warren, Monetus e Alkanza), que oferecem robôs de investimentos aos consumidores, quase todas ligadas a corretoras ou fundadas por analistas que trabalharam em grandes bancos ou gestoras, além de aplicações lançadas por instituições financeiras já consolidadas no mercado [12]. Tais plataformas também possuem um valor mínimo de investimento relativamente baixo, não ultrapassando os R$ 15.000,00, e se destinam à alocação de recursos em renda fixa e ETFs, além de trabalharem com taxas de administração inferiores se comparadas àquelas normalmente cobradas pelos administradores de carteira humanos [13].
Apesar de ser amplo o potencial de crescimento dessa tecnologia no mercado de capitais nacional, tendo em vista que, de acordo com pesquisa elaborada pela consultoria McKinsey, divulgada pela Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais – ANBIMA, mais de 3/4 dos investidores entrevistados teriam interesse em utilizar consultoria financeira digital [14], ressalta-se que apenas a Alkanza, integrada à Corretora Rico, também oferece outras modalidades de investimentos automatizados, voltadas para aposentadoria, conforme descrito em estudo comparativo premiado pela CFA Society Brasil [15].
Regulação dos robo-advisors: desafios e possibilidades
Diante desse cenário, surgem discussões a respeito da regulação dos robo-advisors, observando as regras já emitidas pelos respectivos entes reguladores a respeito de participantes do mercado que desempenham atividade de assessoria financeira. No mercado de valores mobiliários brasileiro, a CVM reconhece a figura do agente autônomo de investimentos (Instrução CVM – ICVM nº 497/2011), dos administradores de carteira (ICVM 558/2015) e dos consultores de valores mobiliários (ICVM 592/2017), dentro outras. Nos termos do art. 16 da referida ICVM 592/2017 [16], os robôs investidores fazem parte desta última categoria e, portanto, devem se registrar perante a CVM observando as regras da instrução aplicáveis a indivíduos.
Ademais, vale destacar que esses robôs tomam suas decisões a partir de uma base de dados obtidos pelo histórico de operações e preferências dos clientes, lidando, portanto, com dados pessoais, que estão sujeitos ao regime da Lei nº 13.709/2018 (Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD), conforme alterada, a qual entrará em vigor em agosto de 2020. Nesse sentido, é necessário que, desde sua concepção – observando o princípio conhecido como “privacy by design” -, os robo-advisors estejam adequados às hipóteses de tratamento de dados pessoais previstas nesse diploma geral, em seus artigos 7º, para qualquer tipo de dados pessoais, e art. 11, para dados sensíveis [17], e às demais normas sobre a matéria que venham a se aplicar, de acordo com o caso (Marco Civil da Internet ou Código de Defesa do Consumidor, por exemplo) [18].
Ainda a respeito do cenário regulatório no Brasil, cumpre ressaltar que, a fim de mitigar potenciais riscos cibernéticos a que estão sujeitos os agentes do mercado que lidam com investimentos automatizados, a ANBIMA publicou, em 2017, seu Guia de Segurança Cibernética [19] contendo recomendações para a implementação de um programa de cybersecuirty que deverá ser seguido por instituições financeiras envolvidas com novas tecnologias. Tal programa envolve ações de prevenção, monitoramento de riscos e repostas a vazamentos de dados, que, de acordo com o art. 48 da LGPD, também deverão ser comunicados à Autoridade Nacional de Proteção de Dados – ANPD, caso venham a se configurar.
Além disso, em notas divulgadas em junho deste ano, a CVM declarou sua intenção de implementar, em conjunto com a Secretaria Especial do Ministério da Economia, o Banco Central do Brasil e a Superintendência de Seguros Privados, um sandbox regulatório para desenvolvimento de tecnologias como consultores financeiros robóticos e inteligência artificial, que já vinham sendo estudadas pelo seu já mencionado grupo, FinTech Hub [20].
Já em relação aos demais países, conforme relatório divulgado pela Organização Internacional de Comissões de Valores Mobiliários (International Organization of Securities Comission – IOSCO), Austrália e Canadá destacam-se na implementação de regras que disciplinam a consultoria automatizada voltada principalmente aos investidores pessoa física [21]. Isso porque, desde 2015, a autoridade do mercado de capitais canadense estuda o assunto, tendo publicado, em tal ano, um guia para consultoria de investimentos online. Já o órgão regulador australiano divulgou em 2016 o Consultation Paper 254, que norteia a regulação dos robôs financeiros nesse país [22]. A autoridade do mercado financeiro francês também advogou em favor dos robo-advisors, propondo uma licença “guarda-chuva” para os consultores automatizados da União Europeia [23].
O rumo dos investimentos automatizados
De fato, os robo-advisors trazem vantagens para os investidores pessoa física e podem servir como uma importante ferramenta para promover a democratização do mercado de capitais – que no Brasil, ainda tem amplo espaço para crescimento. Isso por que o uso de tal tecnologia permite que sejam reduzidos os custos de administração para os clientes e que investidores com menos capital possam acessar o mercado [24]. Além disso, muitos defensores de tal inovação entendem que a escolha por robôs de investimentos mitigaria eventuais conflitos de interesses que poderiam decorrer das relações humanas.
Contudo, trata-se de tecnologia ainda incipiente, que ainda precisa ser efetivamente testada e exige recursos para seu desenvolvimento, o que pode carear e restringir tal opção em um primeiro momento. Além disso, mostra-se crucial ter em mente que tais plataformas não estarão livres de riscos cibernéticos e bugs, que podem complicar seu uso [25]. Afinal, os códigos serão criados também por pessoas e, por isso, não estarão absolutamente blindados às emoções, aos erros e aos conflitos inerentes à racionalidade humana, que permeia o mercado e pode justificar suas falhas, como advogam os estudiosos da economia comportamental.
É inegável que, apesar de ainda limitada, a inteligência artificial, assim como em diversos outros setores da Economia, promete ter significativo impacto no mercado de capitais e em todos os demais ramos do mercado financeiro. Nesse sentido e tendo em vista aplicações cognitivas existentes, a exemplo do robô corporativo Watson, da IBM, e dos instrumentos que com base nele foram desenvolvidos [26], grandes players já procuram criar suas próprias plataformas de investimentos automatizados de grande alcançe [27], e, de acordo com relatório divulgado pela PriceWaterhouseCoopers – PWC, mais de 90% dos administradores de carteira reconhecem a relevância de uma análise de dados bem estruturada [28]. Por isso, é interessante que os participantes do mercado e os entes reguladores acompanhem de perto a evolução da IA, para encontrar soluções inovadoras que permitam melhorar, cada vez mais, a experiência de todos os investidores.
POR: Maria Eugenia Cirillo
FONTE: https://www.lexmachinae.com/2019/07/25/automatizacao-investimentos-big-data-regulacao/