A regulação do ‘Uber das motos’ no Brasil
- Criado em 20/08/2019 Por LinkLei
Política Nacional de Mobilidade Urbana não faz distinção entre os tipos e modalidades de veículos que podem ser considerados motorizados
Nas últimas semanas o noticiário foi inundado por matérias a respeito do início das operações da Picap1, uma startup colombiana que presta serviço de intermediação de corridas de ride-sharing feitas por motocicletas. Em outras palavras, a empresa colombiana quer se tornar conhecida como a Uber das Motos na América Latina.
Depois de uma longa, dolorosa e sangrenta disputa regulatória na Colômbia, a qual gerou centenas de milhares de corridas e inúmeros interessantes aos investidores, a Picap conseguiu concluir sua primeira grande rodada de investimentos, fazendo o levantamento do valor de USD 2.500,00.
Dentre seus investidores, está um dos sócios fundadores da empresa nigeriana Gokada e da empresa bangladesa Pathao (ambas atuantes no ride-sharing de motos), Sr. Fahim Saleh2. A Picap está cumprindo bem o playbook de um startup.
Pelo que pudemos investigar, a sistemática do aplicativo Picap é a mesma já conhecida e amplamente divulgada: a aplicação de internet, por meio de sua plataforma, aproxima os usuários que desejam um veículo automotor para se deslocar daqueles usuários que possuem um veículo automotor e que desejam dirigir para outra pessoa.
Trata-se do clássico conceito de marketplace3.
Imediatamente após o anúncio do início das operações da Picap, iniciou-se a polêmica discussão sobre a legalidade da operação do serviço no Brasil.
Muitas das matérias jornalísticas enquadraram o serviço da Picap como sendo de intermediação de corridas de mototáxi, com dever de observância à Lei Federal n. 12.009/2.009, que regulamentou o exercício dos profissionais em transporte de passageiros – mototaxista, indicando idade mínima, realização de curso específico e uso de colete refletivo de segurança.
Está em tramitação, inclusive, um projeto de lei que busca permitir o uso de aplicativos em rede de comunicação no transporte de passageiros por meio de mototáxis, que acrescenta o art. 3º-A à Lei que instituiu a Política Nacional de Mobilidade Urbana, para permitir o uso de aplicativos em rede de comunicação no transporte de passageiros por meio de motocicletas (Aplicativo para Mototáxi) – projeto de lei de autoria do Deputado Federal Aureo, PL n. 7.376/2017.
Muito embora posicione-se em prol da inovação, não há razão de ser no projeto do deputado federal Aureo.
Isso porque, atualmente, o serviço dos mototaxistas já está regulado Política Nacional de Mobilidade Urbana, no artigo 4o, inciso VIII: “transporte público individual: serviço remunerado de transporte de passageiros aberto ao público, por intermédio de veículos de aluguel, para a realização de viagens individualizadas”.
Ademais, considerando que o desenvolvimento de um aplicativo é uma atividade eminentemente desenvolvida pela iniciativa privada, uma vez que não justificadamente proibida a atividade, a mesma é permitida aos particulares.
Assim como o segmento dos táxis, os mototaxistas também encontram-se no ambiente do direito público e decorrem da concessão de uma licença municipal para o exercício das atividades profissionais4.
Isto é o que foi estabelecido pela Política Nacional de Mobilidade Urbana, nos seus artigos 12 e 12-B5. Trata-se apenas mais uma forma do exercício do transporte público individual, realizado por veículo automotor, as motos.
Repita-se: é importante que fique clara a distinção entre o já tradicional serviço de mototáxi, regulado pela Lei Federal n. 12.009/2009 e o serviço de ride-sharing, que pode ser feito tanto por carros, como por motos. O primeiro se submete às regras de direito público, o segundo se enquadra no universo do direito privado, regido pelos artigos 730 e seguintes do Código Civil, pela Política Nacional de Mobilidade Urbana, pelo Marco Civil da Internet e pela Lei Geral de Proteção de Dados.
Logo, está equivocado o enquadramento dos serviços Picap no contexto do mototáxi. A Picap nada faz além de intermediar corridas “do transporte remunerado privado individual de passageiros”, ou seja, intermediar o “serviço remunerado de transporte de passageiros, não aberto ao público, para a realização de viagens individualizadas ou compartilhadas solicitadas exclusivamente por usuários previamente cadastrados em aplicativos ou outras plataformas de comunicação em rede”, já previstos e regulados no artigo 4o. da Lei que instituiu a Política Nacional de Mobilidade Urbana, coisas que Uber e 99 fazem no Brasil desde o ano de 2012.
Ora, a Política Nacional de Mobilidade Urbana, em seu artigo 3º, ao descrever e classificar o transporte urbano, não faz distinção entre os tipos e modalidades de veículos que podem ser considerados motorizados. Vejamos:
“Art. 3º O Sistema Nacional de Mobilidade Urbana é o conjunto organizado e coordenado dos modos de transporte, de serviços e de infraestruturas que garante os deslocamentos de pessoas e cargas no território do Município.
§ 1º São modos de transporte urbano:
I – motorizados; e
II – não motorizados.
§ 2º Os serviços de transporte urbano são classificados:
I – quanto ao objeto:
a) de passageiros;
b) de cargas;
II – quanto à característica do serviço:
a) coletivo;
b) individual;
III – quanto à natureza do serviço:
a) público;
b) privado.”
Os itens acima geram diversas formas de combinação já existentes no mundo da mobilidade urbana brasileira, nunca tendo sido feita a distinção entre moto ou automóvel quanto ao tipo do veículo motorizado. É nesse contexto que se encontra inserida a Picap: transporte urbano motorizado de passageiros individual privado.
Os mototaxistas, por sua vez, encontram-se descritos da seguinte maneira: transporte urbano motorizado de passageiros público, ocasião em que também não fez distinção com relação aos veículos automotores, se motos ou carros. É evidente a distinção entre as modalidades.
Ou seja, ainda que venha a ser proibido o mototáxi em determinado município, isso não significa, necessariamente, que os serviços da Picap ou de qualquer outro aplicativo que opere no mesmo segmento também possam ser considerados proibidos, posto que a eventual lei nesse sentido deve ser considerada ineficaz ao transporte remunerado privado individual de passageiros. Serviço público é serviço público, serviço privado é serviço privado.
A esse respeito, destaque-se que ao redor do Brasil, existem várias legislações municipais e estaduais que proibiram a rodagem e o serviço dos mototaxistas6, as quais já foram julgadas inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, por violação à Competência Privativa da União para legislar sobre trânsito e transporte:
“EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI DO ESTADO DE SANTA CATARINA. LICENCIAMENTO DE MOTOCICLETAS DESTINADAS AO TRANSPORTE REMUNERADO DE PASSAGEIROS. COMPETÊNCIA DA UNIÃO. INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL. 1. É da competência exclusiva da União legislar sobre trânsito e transporte, sendo necessária expressa autorização em lei complementar para que a unidade federada possa exercer tal atribuição (CF, artigo 22, inciso XI, e parágrafo único).”7.
“EMENTA: Ação direta de inconstitucionalidade. 2. Lei do Estado do Pará. 3. Serviço de transporte individual de passageiros prestado por meio de ciclomotores, motonetas e motocicletas. 4. Competência privativa da União para legislar sobre trânsito e transporte(art. 22, XI, CF). 5. Precedentes (ADI 2.606/SC). 6. Procedência da ação.”8.
No mesmo sentido, também foram julgadas inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal as Leis Municipais de São Paulo e Fortaleza que proibiram o transporte urbano motorizado de passageiros individual privado nas respectivas cidades, tendo sido fixada a seguinte tese de repercussão geral no Recurso Extraordinário n. 1.054.110/SP e na APDF n. 449:
“1 – A proibição ou restrição da atividade de transporte privado individual por motorista cadastrado em aplicativo é inconstitucional, por violação aos princípios da livre iniciativa e da livre concorrência.
2 – No exercício de sua competência para a regulamentação e fiscalização do transporte privado individual de passageiros, os municípios e o Distrito Federal não podem contrariar os parâmetros fixados pelo legislador federal (Constituição Federal, artigo 22, inciso XI).”.
Ou seja, fica claro que o transporte remunerado privado individual de passageiros – serviço tradicionalmente desenvolvimento por plataformas como Uber e 99 – não pode ser proibido, nem sofrer restrições regulatórias.
No mesmo sentido está o caso da Picap, Uber das motos, 99 das motos, Cabify das motos, que não pode ser proibido, posto que o precedente fixado pelo Supremo Tribunal Federal também é aplicável à sua hipótese, o que reforça sua legalidades.
Além disso, a eventual regulamentação do serviço não pode: (i) criar restrições ao serviço e ao modelo de negócios; (ii) ultrapassar os pontos estabelecidos nos artigos 11-A e 11-B da Lei Federal n. 13.640/2018; (iii) desobedecer o artigo 22, inciso XI, da Constituição Federal, que fixa que somente a União Federal pode legislar sobre trânsito e transporte.
Do ponto de vista normativo, tem-se como claro que o serviço da Picap é legal e já está regulado, sendo impossível a sua proibição ou a imposição de restrições que violem a livre iniciativa, nos termos do precedente fixado pelo Supremo Tribunal Federal (Recurso Extraordinário 1.054.110/SP) e pela atual redação da Política Nacional de Mobilidade Urbana.
É bem verdade que o serviço dos motoristas de moto da Picap também está regulado e regulamentado com regras básicas de segurança, introduzidas por meio do Código de Trânsito Brasileiro aos motociclistas, quais sejam, (i) utilização de capacete; (ii) utilização do guidom com as duas mãos; (iii) indicação de qual faixa de rolagem as motos devem utilizar; (iv) velocidade máxima para as motocicletas em determinadas vias etc.
Ao contrário do que se poderia imaginar, não há vácuo legislativo e regulatório, mas apenas uma falta de compreensão acerca do modelo de negócios da Picap e de sua operação, tendo em vista o seu caráter disruptivo.
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1 Sobre o assunto: ALMEIDA, Marília. Disponível em https://exame.abril.com.br/seu-dinheiro/uber-das-motos-chega-ao-brasil-e-promete-corridas-ate-30-mais-baratas/, acesso em 15 de julho de 2019, às 23h36min; e Catraca Livre: https://catracalivre.com.br/mais/uber-das-motos-chega-ao-brasil-com-promessa-de-corridas-mais-baratas/, acesso em 15 de julho de 2019, às 23h38min.
2 Confira-se: https://www.crunchbase.com/organization/picap#section-investors. Acesso em 24 de julho de 2019.
3 CANEN, Dóris. Marketplaces: ISS e Desafios. Revista de Direito e as Novas Tecnologias | vol. 3/2019 | Abr – Jun / 2019 | DTR\2019\27980.
4 A esse respeito, confira-se o exemplo de Lei da cidade de Araraquara/SP ou em Soure/PA: https://leismunicipais.com.br/a/sp/a/araraquara/lei-ordinaria/2011/750/7507/lei-ordinaria-n-7507-2011-regulamenta-o-exercicio-das-atividades-de-mototaxista-e-motoboy-no-ambito-do-municipio-e-da-outras-providencias e https://www.soure.pa.gov.br/wp-content/uploads/2017/07/LE322700.pdf. Acesso em 24 de julho de 2019, às 10h22min.
5 Art. 12. Os serviços de utilidade pública de transporte individual de passageiros deverão ser organizados, disciplinados e fiscalizados pelo poder público municipal, com base nos requisitos mínimos de segurança, de conforto, de higiene, de qualidade dos serviços e de fixação prévia dos valores máximos das tarifas a serem cobradas. rt. 12-A. O direito à exploração de serviços de táxi poderá ser outorgado a qualquer interessado que satisfaça os requisitos exigidos pelo poder público local.
6 A esse respeito, confira-se o exemplo de São Paulo, onde o Prefeito Bruno Covas sancionou lei que proíbe o serviço na cidade: “Revoga a Lei Municipal nº 12.609, de 6 de maio de 1998 e altera a Lei Municipal nº 14.766, de 18 de junho de 2008, a fim de proibir a utilização de motocicletas para o transporte de passageiros (moto-táxi)”.
7 ADI n. 2606, Ministro Relator Maurício Corrêa.
8 ADI n. 3135, Ministro Relator Gilmar Mendes.
GIOVANI DOS SANTOS RAVAGNANI – Mestre em Direito Processual pela Universidade de São Paulo. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual e do Centro de Estudos Sociedade e Tecnologia da POLI/USP. Gerente Jurídico em 99. Advogado atuante na área cível e empresarial, com foco em resolução de conflitos.