A democracia no mundo dos algorítimos
- Criado em 26/08/2019 Por LinkLei
Como as novas tecnologias afetam o estado de Direito na sociedade informacional.
Analisar o passado a partir do presente é uma tarefa mais fácil do que imaginar o futuro, muito em razão de o futuro não ser fruto de uma sequência racional de eventos, mas sim de reações imprevisíveis. Peguemos a guinada tecnológica que atingiu a humanidade em especial no século XXI. Para nós, como expectadores desse momento histórico, a tecnologia parece seguir um único caminho: o do progresso. Ao estudioso que nos analisar em alguns bons anos, todavia, pode lhe parecer que o desenvolvimento exponencial da tecnologia só teria um possível e óbvio resultado: o abalo das estruturas republicanas e democráticas já tão consolidadas em nossa Constituição e de tantos outros países.
Voltemos para esse nosso alter ego idealista. Há de se admitir que, de fato, a tecnologia tem um poder de nos persuadir e o advento de uma das tecnologias mais transformacionais – a internet – só poderia trazer profecias otimistas. O aumento da disponibilidade e do fluxo informacional foi tanto que o mundo parecia certo a se tornar totalmente conectado, informado e, por fim, politizado. Nesse mar de redes de informações sem governança centralizada, a informação pulsaria livre para formar uma biblioteca gratuita de dados acessível a uma quantidade sem-número de pessoas.
Em seus primórdios, a internet era vista como um campo no qual você, atrás da tela do computador, poderia ser quem quisesse sem que ninguém descobrisse. Com os passar dos anos, a lógica inverteu-se. Uma série de inovadores serviços online passaram a ser oferecidos a partir do fornecimento de dados pessoais, mas você passou a não poder mais esconder quem é.
As redes sociais são emblema dessa transformação. De meras ferramentas com funcionalidades arcaicas, passaram não apenas a armazenar uma crescente quantidade de informações sobre um determinado indivíduo, mas também a concentrar em uma única plataforma toda sua comunicação daquele usuário no mundo online. Com o uso da big data, tais plataformas passaram a conhecer mais sobre um usuário do que ele conhece de si mesmo, ao criar perfis comportamentais representativos dos gostos desse indivíduo.
Tamanho crescimento não veio sem problemas, quando se notou o impacto negativo das redes sociais em processos eleitorais. O primeiro grande caso de suspeita de uso de tecnologia para deturpar processos eleitorais aconteceu no Reino Unido de 2016, durante a campanha para sua retirada da União Europeia, o chamado Brexit. A empresa britânica Cambridge Analytica forneceu serviços de análise de dados para a campanha pró-Brexit por meio de métodos questionáveis que, em breve, seriam aplicados em maior escala nos EUA.
Na campanha da eleição de Donald Trump para presidência dos EUA, a Cambridge Analytica prestou consultoria estratégica com um fim relativamente usual: segmentar eleitores a fim de identificar aqueles receptivos a uma determinada mensagem. O grande diferencial, no entanto, foi que a empresa utilizou indevidamente dados de milhões de usuários da internet, por meio de uma pesquisa que dizia visar a fins acadêmicos, mas que acessou dados de usuários que não haviam consentido com a obtenção de seus dados pessoais.A Cambridge Analytica construiu perfis detalhados de milhões de americanos e concluiu com grande precisão quais seriam os suscetíveis a votar em Trump. O impacto nessa disputa presidencial acirrada não parece ter sido negligente.
No Brasil, a tecnologia dos algoritmos acabou por desviar usuários de forma automática para conteúdo baseado em emoções como medo e raiva, dando voz a canais que não tinham audiência e espaço para conteúdo que, do contrário, ficaria nas sombras, contribuindo para a ascensão da extrema direita brasileira, o que foi constatado por uma equipe do Centro Berkman Klein de Harvard. Em razão desse sistema de recomendações, rumores ganharam ares de verdade para determinado tipo de usuário, na medida em que canais diversos ecoavam a mesma narrativa.
A dinâmica das redes sociais, pautada em algoritmos que mapeiam nossos dados para nos fornecer sugestões mais exatas possíveis, não apenas estimula que passemos grande parte de nosso tempo online fornecendo mais e mais informações, a fim de criar uma base de dados capaz de antecipar nossos comportamentos, mas também cria bolhas de informações homogêneas, nas quais a opinião diferente não tem espaço. É a eugenia digital.
Essa homogeneidade afeta negativamente o fluxo de informação. Em geral, ele baseia-se em um tripé feito pelos seguintes vértices: disponibilidade (o que chega), acesso (como chega), acurácia (qual o conteúdo). Há uma falsa impressão de que esses critérios funcionariam em nível ótimo em um mundo tecnológico; na realidade, a disponibilidade de informação é de fato imensa, mas o que chega é customizado por terceiros com objetivos particulares em suas plataformas, que funcionam como o principal meio de acesso às informações e, por essa razão, comprometem a acurácia do conteúdo. Tem-se o que se chama de falácia da informação: em um ambiente de quantidade infindável de informações, não se gera o proporcional conhecimento sem fluxo livre.
O resultado não é apenas aquém em razão do conhecimento gerado, mas sim em razão do nível de desinformação criado. Essa falha no mercado informacional acabou por estimular o gosto por tudo aquilo que é mais simplório, extremo e radical, ao mesmo tempo em que a oferta por este conteúdo cresce. Esse movimento de oferta e demanda se retroalimentou e fez surgir um grande mercado de porta-vozes da desinformação.
Quando o assunto é política, a desinformação é regra. Agora, os discursos populistas, uma outra constante no raio político, têm como aliada uma rede de divulgação de conteúdo invisível a grupos dissonantes. Vozes antes abafadas, quando a mídia tradicional possuía quase o monopólio dos meios de comunicação, ganharam eco com a universalização do acesso à internet: qualquer um pode ter sua plataforma para expressar suas opiniões, sejam elas infundadas, inverídicas ou ilegais. Bombardeadas por desinformação online, de acordo com seus perfis psicológicos, as pessoas passaram a desconfiar da mídia tradicional e a acreditar mais em suas emoções para validar uma informação. É o ambiente perfeito para a explosão de vários vieses cognitivos estudados pelas finanças comportamentais, dos quais se destaca o chamado viés de confirmação (confirmation bias).
Nesse cenário de ideais cooptados é que a tecnologia passou a atingir o âmago de nossa sociedade: a democracia. Ainda que ápice da evolução política, a democracia ocidental não possui um conceito estático e imutável, tendo em vista sua constante evolução; ainda assim, pode-se dizer que é um regime político baseada nas ideias da autodeterminação política e da representatividade. Enquanto possuidor do poder de governação, o povo elege cidadãos que possuirão o poder para representar, por procuração, a sociedade em seus espectros mais diversos. Para consubstanciar o poder do povo, por meio do voto, de se autodeterminar, explica Norberto Bobbio, faz-se necessário “o princípio de limitação da competência dos governantes – são essencialmente: a divisão dos podêres, a eleição e a publicidade”.
A tecnologia, segundo o autor britânico Jamie Bartlett, atingiria a democracia, na medida em que, a partir de uma extensa coleta de dados com fins publicitários, reduz o espaço para livre escolha e autonomia individual, ao mesmo tempo em que, ao restringir os indivíduos a tribos sem referencial confiável, permite que estes acreditem em mitos sem base na realidade, aniquilando o debate público e incentivando a demagogia, o populismo e o totalitarismo.
Quando, portanto, campanhas com esse novo foco populista nativista apelam para irracionalidade e emoção das massas de forma sistemática e institucionalidade, vê-se um claro viés antidemocrático típico de governos autocráticos. Enquanto antítese da democracia, esses governos caracterizam-se por tolher a liberdade, a racionalidade e autodeterminação dos povos justamente. Conforme nos lembra Antônio Almeida Júnior: os governos autocráticos apelam às reservas irracionais e emotivas da população e, ao “uniformizar tendências sociais e políticas e eliminar os atritos decorrentes do espírito crítico, da diversidade de grupos e das diferenças individuais, tendem (…) a instalar a unanimidade maciça, a estabelecer um nivelamento pelo inferior”, diz o sociólogo Karl Mannheim, o que representa “a regressão geral e consciente do pensamento racional (..) que constitui a grande crise do mundo moderno”, segundo o professor Fernando Azevedo.
Assim como a censura é estratagema para controlar o fluxo informacional por governos autocráticos, o abuso de sofisticadas tecnológicas é o mecanismo para direcionar e desvirtuar informações por grupos políticos por meio da ignóbil ânsia por conteúdo apelativo e emocional em nossa democracia tecnológica. A utilização desses métodos de controle sobre o fluxo de informação para mudar eleições governamentais subverte as bases dos sistemas políticos dos países ocidentais e desnatura a democracia ao obliterar seu elemento mais importante: a liberdade e a consequente legitimidade do pensamento dissonante, essenciais para o aprimoramento do próprio sistema democrático.
Mais do que apenas uma estrutura de eleição, a democracia permite a livre prática dos imperativos sociais, econômicos e culturais em torno da busca pelo bem comum. Claro que governos democráticos não são infalíveis em suas buscas pelo bem comum, conquanto também podem ser permeados por aventureiros e cooptados por forças particulares. No entanto, conforme ensina Rousseau, todos nascem livres e iguais, mas é a democracia enquanto sistema de associação que defende a força comum para que as pessoas permaneçam livres. A democracia representa a natureza racional e a liberdade inata da humanidade, em especial pelo fato de ser uma conquista e não um dado: ela é resultado de um processo histórico lento e custoso e sua própria imperfeição foi moldada a partir desses percalços. E esse processo pode retroceder se não for protegido.
Da mesma forma, a tecnologia também é uma conquista em um caminho de acertos e erros, mas a natureza desse impacto ainda está sendo definida a partir do que a sociedade faz da tecnologia. Ainda que fruto do desenvolvimento da sociedade, a tecnologia não significa um avanço social per se, pois não é intrinsecamente boa: ao utilizar desenvolvimento tecnológico de forma necessariamente positiva, perde-se de vista que não é a técnica do método que delimita seu valor, mas sim o uso que se faz a partir da técnica.
Quando olharmos, agora como atores, para as mais recentes mudanças políticas no ocidente, pode-se questionar se o otimismo em relação à tecnologia não teria passado apenas de um sonho. Quiçá, o atual momento já nos colocou na privilegiada posição de olhar para um passado ainda muito recente e concluir se resta cristalizado o caminho sem volta pavimentado pela falácia da informação. Ao, porém, olhar o distante passado das conquistas sociais, podemos nos inspirar ao constatar que, enquanto livres, temos como nos autodeterminar, seja contra ameaças físicas ou virtuais.
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Bibliografia
ALMEIDA JÚNIOR, Antônio. Os três pilares da democracia. Revista Da Faculdade De Direito, Universidade De São Paulo, 40, 1945, 130-148.
BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia, Ed. Paz e Terra.
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TEIXEIRA, J. H. Meirelles. Curso de direito constitucional, Forense Universitária.
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[https://apublica.org/2019/03/como-a-internet-esta-matando-a-democracia/]. Acesso em: 10.08.2019.
GABRIEL NANTES GIMENEZ – Advogado e consultor, Cursando MBA na HEC Paris com foco em Estratégia e Digital, Pós-graduado em Direito Empresarial pela Escola Superior de Advocacia OAB (ESA-OAB SP), Graduado em Direito pela Universidade de São Paulo (USP)
PAULO DALLA NORA MACEDO – Economista. MBA pelo INSEAD/França. Especialização em Marketing pela UCLA Berkeley e graduação em Economia na UFPE. É cofundador da Associação e plataforma Poder do Voto