A Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor e Seu Acolhimento Pelo STJ
- Criado em 27/03/2019 Por Arthur Bicudo Furlani
Ganha corpo em nosso País a teoria do DESVIO PRODUTIVO DO CONSUMIDOR: o prejuízo do tempo desperdiçado.
Segundo o criador da Teoria, Dr. Marcos Dessaune, o Desvio Produtivo do Consumidor “é um fenômeno socioeconômico que se caracteriza quando o fornecedor, ao atender mal, criar um problema de consumo potencial ou efetivamente danoso e se esquivar da responsabilidade de saná-lo, induz o consumidor em estado de carência e condição de vulnerabilidade a despender seu tempo vital, existencial ou produtivo, a adiar ou suprimir algumas de suas atividades planejadas ou desejadas –que geralmente são existenciais – e a desviar suas competências dessas atividades, seja porque não há solução imediatamente ao alcance para o problema, seja para buscar a solução que na hora se apresenta possível, seja para evitar o prejuízo que poderá advir, seja para conseguir a reparação dos danos que o problema causou”¹.
Ainda, prossegue o autor expondo o dinamismo do direito, apresentando o termo moderno da definição de dano moral, bem como argumentando como as alegações de “mero dissabor ou aborrecimento” encontram-se defasadas e em desacordo com os direitos da personalidade:
“Modernamente, dano moral é definido como ‘a lesão a um atributo da personalidade humana’.
(...)
O entendimento de que o consumidor, ao enfrentar problemas de consumo criados pelos próprios fornecedores sofre “mero dissabor ou aborrecimento” e não dano moral indenizável, revela um raciocínio construído sobre premissas equivocadas que, naturalmente, conduzem a essa conclusão falsa. A primeira de tais premissas é que o conceito de dano moral enfatizaria as consequências emocionais da lesão, enquanto ele já evoluiu para centrar-se no bem ou interesse jurídico atingido; ou seja, o objeto do dano moral era a dor; o sofrimento, a humilhação, o abalo psicofísico, e se tornou qualquer atributo da personalidade humana lesado. A segunda é que, nos eventos de desvio produtivo, o principal bem ou interesse jurídico atingido seria a integridade psicofísica da pessoa consumidora, enquanto, na realidade, são o seu tempo e as suas atividades cotidianas. A terceira é que esse tempo não seria juridicamente tutelado, enquanto, a priori, ele se mostra resguardado no elenco dos direitos da personalidade. Por conseguinte, o lógico seria concluir que as situações de desvio produtivo do consumidor acarretam, no mínimo, dano moral indenizável, conforme se aprofundará adiante.²”
(grifo nosso)
Os direitos da personalidade receberam atenção especial do legislador, conforme é possível observar no capítulo II do Código Civil de 2002. Entende-se, contemporaneamente, que a personalidade foca no lado espiritual da pessoa, visando proteger a sua Dignidade.
Tal concepção, aliás, está prevista na Constituição Federal de 1988, no artigo 1º, inciso III: “a dignidade da pessoa humana”, enquadrando-se, portanto, como fundamento do Estado Democrático de Direito Brasileiro.
Neste ínterim, a dignidade da pessoa humana é entendida como o conjunto de atributos do ser humano – ancestralidade, nome, imagem, honra, integridade física e psíquica etc. – sendo estes atributos disciplinados no Código Civil com o nome de Direitos Da Personalidade, conforme dito alhures.
Tratando-se dos valores morais humanos como parte de seus direitos extrapatrimoniais da personalidade, evidente que estes protagonizam-se como parte do que identifica o ser humano como tal, compreendendo, então, direitos atinentes à promoção da pessoa na defesa de sua essencialidade e dignidade.
Conclui-se que um evento de desvio produtivo acarreta lesão ao tempo existencial e à vida digna da pessoa consumidora, que assim sofre necessariamente um dano extrapatrimonial de natureza existencial que é indenizável in re ipsa, independentemente de culpa do fornecedor.
A partir deste entendimento, então, como consequência lógica do combate aos abusos e malícias sofridas pelo consumidor, sobretudo as experimentadas pelos hipossuficientes, a doutrina e a jurisprudência evoluíram no sentido de que o dano moral pode, sim, advir do inadimplemento contratual ou legal, uma configurada lesão a quaisquer dos direitos inerentes à personalidade, sendo desnecessário verificar a presença de elementos de cunho subjetivo, tais como a dor, o sofrimento, a humilhação, etc.
Assim, quando o fornecedor demora a atender a reclamação do consumidor, fazendo com que o consumidor desperdice considerável pedaço de seu tempo, a situação sai do simples aborrecimento, para afetar o sossego, a tranquilidade e, assim, situar no terreno dos danos morais.
Mais do que isso: enxergando-se o tempo como produto, podendo, então, aplicar a Lei de Oferta e Procura (visto que tudo necessita de tempo para ser pensado, criado e vivido), evidente que este é um bem escasso: a demanda buscada é enorme para o tempo disponível em nossa estadia neste mundo.
Especificando ainda mais: o tempo apresenta como suas idiossincrasias as características de ser finito, inacumulável e irrecuperável.
Daí surge a valorização do tempo do consumidor como uma epifania da compreensão e acolhimento deste como um bem raro. Ato contínuo, sintetizando-se a Lei da Oferta e da Procura, que devidamente é aplicável ao tema, encontramos a expressão latina: Raritas pretium facit, ou seja, a escassez faz o preço.
Parafraseando todo o exposto até o momento, podemos entender que a escassez torna o bem raro. Como o tempo não pode ser produzido, este é inestimável.
Um fornecedor de bens ou serviços que faz o consumidor deslocar seu precioso e excepcional tempo neste mundo não pode restitui-lo como meio de indenização, restando-se, então, a compensação patrimonial como um dever ético e moral pelo prejuízo causado.
É preciso registrar que os tribunais de todo o país, bem como o Superior Tribunal de Justiça, vêm derrubando a ideia arcaica de “mero dissabor ou aborrecimento” para reconhecer que as empresas devem, sim, responder por danos morais como forma objetiva.
Destaca-se o v.acórdão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em dezembro de 2018, que resultou por CANCELAR a enunciado Nº 75, da súmula de jurisprudência do citado tribunal que entendia que “o simples descumprimento de dever legal ou contratual, por caracterizar mero aborrecimento, em princípio, não configura dano moral, salvo se da infração advém circunstância que atenta contra a dignidade da parte”:
PROCESSO ADMINISTRATIVO INSTAURADO A REQUERIMENTO DO CENTRO DE ESTUDOS E DEBATES DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO - CEDES, MEDIANTE PROVOCAÇÃO DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL - SEÇÃO JUDICIÁRIA DO RIO DE JANEIRO (OAB/RJ). PROPOSIÇÃO DE CANCELAMENTO DO VERBETE SUMULAR Nº 75, DESTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA, TENDO EM VISTA A EXISTÊNCIA DE JULGADOS DESTA CORTE, E TAMBÉM DO STJ, NO SENTIDO DE QUE O INADIMPLEMENTO CONTRATUAL É, SIM, CAPAZ DE GERAR DANO MORAL, DESDE QUE HAJA LESÃO A ALGUM DOS DIREITOS INERENTES À PERSONALIDADE, ADOTANDO-SE A TEORIA OBJETIVA, EM DETRIMENTO DA TEORIA SUBJETIVA A QUE ALUDE O ENUNCIADO DE SÚMULA, QUANDO FAZ REFERÊNCIA AO MERO ABORRECIMENTO, EXPRESSÃO DEMASIADAMENTE AMPLA E CAPAZ DE GERAR AS MAIS DIVERSAS E VARIADAS INTERPRETACÕES, POR PARTE DE CADA MAGISTRADO, DIANTE DE CASOS CONCRETOS FUNDADOS EM UM MESMO FATO DANOSO, COM VIOLAÇÃO, ASSIM, DOS PRINCÍPIOS DA ISONOMIA E DA SEGURANÇA JURÍDICA. JULGADOS DESTA CORTE DE JUSTIÇA QUE, DESDE OS IDOS DE 2009, TRAZEM DENTRE OS DIREITOS DA PERSONALIDADE O TEMPO DO CONTRATANTE, QUE NÃO PODE SER DESPERDIÇADO INULTILMENTE, TOMANDO POR BASE A MODERNA TEORIA DO DESVIO PRODUTIVO DO CONSUMIDOR. SÚMULA QUE NÃO MAIS SE COADUNA COM O ENTENDIMENTO ADOTADO POR ESTE SODALÍCIO, E, QUE ACABA POR SERVIR DE AMPARO PARA QUE GRANDES EMPRESAS, EM FRANCA VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA, CONTINUEM A LESAR OS DIREITOS DOS CONTRATANTES, SOB O AMPARO DE QUE O INADIMPLEMENTO CONTRATUAL NÃO É CAPAZ DE GERAR MAIS DO QUE MERO ABORRECIMENTO. ACOLHIMENTO DA PROPOSTA DE CANCELAMENTO DO ENUNCIADO Nº 75, DA SÚMULA DE JURISPRUDÊNCIA PREDOMINANTE DESTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA.
(TJ-RJ - PA: 00567161820188190000, Relator: Des(a). MAURO PEREIRA MARTINS, Data de Julgamento: 17/12/2018, OE - SECRETARIA DO TRIBUNAL PLENO E ÓRGÃO ESPECIAL)
(grifo nosso)
De todo o brilhantismo do ilustre Desembargador Relator Mauro Pereira Martins, é preciso destacar as passagens:
“(...) como forma de combater as injustiças daí advindas, sobretudo, as experimentadas pelos hipossuficientes, doutrina e jurisprudência evoluíram no sentido de que o dano moral pode, sim, advir do inadimplemento contratual ou legal, desde que reste configurada, no caso concreto, lesão a quaisquer dos direitos inerentes à personalidade, sendo despiciendo, verificar a presença de elementos de cunho subjetivo, tais como a dor, o sofrimento, a humilhação, etc.
Ou seja, passou-se a defender a teoria objetiva do dano moral, fundada na violação a direito da personalidade, em detrimento da teoria subjetiva, na qual se enquadra o mero aborrecimento tratado pela súmula ora questionada.
(...)
De igual forma, o Enunciado nº 445 da V Jornada de Direito Civil, referindo-se ao artigo 927 do Código Civil, preconiza que o “dano moral indenizável não pressupõe necessariamente a verificação de sentimentos humanos desagradáveis como dor ou sofrimento”.”
(grifo nosso)
Não o bastante, a citada Teoria, desenvolvida pelo advogado Marcos Dessaune, reiteradas vezes fora referenciada e aplicada pelo Superior Tribunal de Justiça em decisões recentes, conforme se verifica:
“AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 1.271.452 - SP (2018/0073676-7) RELATOR : MINISTRO ANTONIO CARLOS FERREIRA AGRAVANTE : CRUZEIRO DO SUL EDUCACIONAL S.A ADVOGADOS : SERGIO HENRIQUE CABRAL SANT' ANA - SP266742 KATHLEEN FERRABOTTI MATOS E OUTRO (S) - SP345036 AGRAVADO : TATIANE MARTINS FELIPE ADVOGADO : KELY ALICE FERREIRA DO NASCIMENTO - SP319873 DECISÃO Trata-se de agravo nos próprios autos interposto contra decisão que inadmitiu recurso especial por aplicação da Súmula n. 7 do STJ (e-STJ fls. 321/322). O Tribunal de origem negou provimento ao apelo da agravante, conforme ementa a seguir (e-STJ fl. 258): APELAÇÃO - AÇÃO INDENIZATÓRIA - FALHA NA PRESTAÇÃO DE SERVIÇO - MANUTENÇÃO DO JULGADO - DANOS MORAIS - 'QUANTUM'. - A conduta e a frustração em desfavor da discente viola elemento integrante da moral humana, constituindo dano indenizável desvio produtivo do consumidor que não merece passar impune inteligência dos artigos 186 e 927 do Código Civil. 'Quantum' arbitrado de acordo com a extensão do dano e dos paradigmas jurisprudenciais artigo 944, do Código Civil. Falha na apreciação do pleito da discente que justifica a condenação imposta; - Manutenção da decisão por seus próprios e bem lançados fundamentos artigo 252 do Regimento Interno do Tribunal de Justiça de São Paulo; RECURSO NÃO PROVIDO.
(...)
(STJ - AREsp: 1271452 SP 2018/0073676-7, Relator: Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, Data de Publicação: DJ 20/08/2018)”
(grifo nosso)
Ademais, a aplicação da Teoria do Desvio Produtivo foi reafirmada em outros v.acórdãos: REsp 1.763.052/RJ, REsp 1.167.382/SP, AREsp 1.167.245/SP, AREsp 1.274.334/SP e AREsp 1.271.452/SP.
Diante de todo o exposto, portanto, é possível verificar o acatamento dos tribunais do país em relação à Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor, demonstrando que o deslocamento do tempo do consumidor para sanar eventual situação gerada pelo próprio fornecedor gera de forma objeto, pois, o DANO MORAL.
Arthur Bicudo Furlani – Advogado
www.castaldelliadvogados.com.br – arthur@castaldelliadvogados.com.br
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¹ - III Seminário de Seguros de Responsabilidade Civil: riscos complexos da sociedade pós-moderna, desafios e novos negócios.
² - DESSAUNE, Marcos, Teoria Profundada do Desvio Produtivo do Consumidor: o prejuízo do tempo desperdiçado e da vida alterada, 2. ed. re. e ampl., Vitória, ES: Edição Especial do Autor, 2017, p. 135-136
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IMAGEM: autor não localizado.