O encarceramento, a punição e seus efeitos na sociedade contemporânea
- Criado em 07/03/2018 Por Felipe Giacomolli
A punição, compreendida como instituição social na linha teórica da “Sociologia do Castigo” preconizada por David Garland, aclamado jurista e sociólogo inglês, transpassa diversos aspectos da vida em sociedade. No bojo de uma sociedade, o autor aduz que são as práticas punitivas que dão sentido e unem seus indivíduos entre si e às instituições. Além disso, a punição e as práticas punitivas também orientam reações emocionais padronizadas e esperadas em relação àqueles com comportamentos desviantes aos do grupo social, como, por exemplo, a ira, o ódio, a indignação, a indiferença, a aversão e, em alguns casos, a intolerância (GARLAND, 1999).
Ao contrário do famigerado jargão de que “o Brasil é o país da impunidade”, tanto em nosso país, como nos Estados Unidos – nação que muitas vezes é tida como exemplo no quesito qualidade de vida – nunca se puniu tanto quanto atualmente. O postulado da law and order, culturalmente aceito e prestigiado em terras norte-americanas, se estendeu e incorporou à cultura punitivista da sociedade Brasileira, o que se pode verificar a partir do recrudescimento dos aparelhos do sistema penal e da população prisional brasileira, que chegou a aumentar cerca de 600% nos últimos 25 anos.
A ilustrar esse cenário, em 2015, o Brasil ostentava a terceira maior população carcerária do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos e da China, em números absolutos. A cada 100 mil habitantes, o brasil contava com 352,6 indivíduos presos em junho de 2016, alcançando um total de quase 727 mil cidadãos encarcerados. Os números impressionam e crescem em nível exponencial. Por mês, estimula-se um aumento de 5,7 mil pessoas na massa carcerária brasileira.[1]
O problema, além de grande, é social e reflete diretamente no crescente clima de insegurança vivenciado no cotidiano da sociedade brasileira. Suas soluções, na mesma dimensão, não são simples e não surgem de imediato.
Nessa perspectiva, na tentativa de diminuir o número de indivíduos presos e pôr termo à chamada “crise da prisão”, surgiram, no final do século XX, os chamados substitutivos penais, ou, em outras palavras, as “medidas descarcerizadoras”. Essas medidas (composição civil, transação penal, suspensão condicional do processo, penas restritivas de direitos e multa, por exemplo), inicialmente, buscavam romper a lógica punitivista e diminuir o impacto do encarceramento.
Todavia, funcionaram, na prática, de maneira diametralmente oposta.
Após um curto período desde que implementados, a linha evolutiva do controle punitivo continuou crescendo exponencialmente, pois além da quantidade de prisões manter seu nível de crescimento alarmante, somaram-se a elas um número cada vez maior de pessoas cumprindo as medidas alternativas. Desse modo, aumentaram-se as plataformas alternativas sem que isso, ao invés do esperado, levasse a uma efetiva descarcerização, ou nem mesmo a uma redução na expansão da prisão.
Até certo ponto, não é novidade que a punição desempenha uma “função social complexa”, uma vez que as penas não foram concebidas apenas para castigar, mas também para manter e aperfeiçoar os próprios mecanismos punitivos e suas funções, ou seja, a própria “máquina” do poder punitivo. Como dizia Foucault: “é tudo arranjado, de alto a baixo do sistema, para que funcionem os ilegalismos e os delinquentes mais lucrosos se multipliquem” (FOULCAULT, 1975). Nesse contexto, a pena privativa de liberdade na forma de encarceramento do indivíduo, já nasceu em crise, eis que desde sua consolidação, de forma concomitante, emergiu a chamada “reforma da prisão”. Destarte, essa sanção, que pretenda ter efeitos sobre a liberdade dos indivíduos, não pode deixar de se transformar perpetuamente.
No panorama atual, o complexo caminho que se percorre ao pensar a penalidade e verificar como ela se exerce deve sempre atentar à ideia de segurança. Nesse passo, a segurança, como técnica política, regula a aleatoriedade de eventos em uma sociedade. E, arbitrar a liberdade e a segurança em torno do sentimento de perigo representa a chave para entender a atual “cultura do perigo” catapultada pelo liberalismo.
Nesse contexto, inserem-se os atuais aparatos (ou poderes) de controle. Aparentemente sem qualquer tipo de coerção ou obrigação, somos expostos à vigilância e ao controle em uma perspectiva global e em um grau jamais imaginado. Desde bancos de dados, até mapeamento de ruas em tempo real, vivemos na era do controle absoluto, onde a velocidade da informação eleva exponencialmente as formas de controle sobre tudo e todos. Essas novas tecnologias também são utilizadas como novas técnicas de controle, as quais têm alargado e aumentado os meios de vigilância penal.
Outrossim, emerge em nossa sociedade, como sintoma de fundo no ambiente político, certo fervor em punir. O juiz passa a desempenhar um papel político fundamental em termos criminais em uma sociedade onde a gestão dos perigos tornou-se fundamental, e a demonização do outro tem apoio das massas de manobra. Na chamada guerra universal contra o crime, o ativismo judicial ganha espaço público como ferramenta destacada no combate à criminalidade. É o tempo das vítimas e o tempo da indignação coletiva em relação ao acusado, quem passa a ser o mal personificado.
Todavia, as instituições ligadas ao Poder Judiciário e à justiça em geral encontram-se em certa medida confortadas com os efeitos populistas, quando, em realidade, deveriam resistir a esse fervor emanado pela sociedade punitivista. Com toda a certeza, recuperar o desejo de liberdade e não o deixar enfraquecer e sumir frente às demandas punitivas e populistas será sempre das tarefas mais árduas, dada sua natureza contra hegemônica, ainda mais nos tempos obscuros que marcam a contemporaneidade. Aguardemos as cenas dos próximos capítulos que, ao que tudo indica, não serão nada promissoras.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FOUCAULT, Michel. Estratégia, poder-saber. Ditos e Escritos IV. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.
GARLAND, David. As Contradições da “Sociedade Punitiva”: o caso britânico. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, p. 59-80, 1999.
MORAIS DA ROSA, Alexandre; AMARAL, Augusto Jobim do. Cultura da Punição: a ostentação do horror. Florianópolis: Empório do Direito, 2015.
[1] Dados retirados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, divulgados pelo DEPEN, do Ministério da Justiça, em junho de 2016. Disponível em: . Acesso em: 26/02/2018.
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