PLANEJAMENTO SUCESSÓRIO: A VISÃO SISTÊMICA COMO DIFERENCIAL DO ADVOGADO.
- Criado em 22/01/2020 Por Allana Garbelini
PARTE 2
Contextos do Planejamento Sucessório
Dividimos, aqui, o Planejamento Sucessório em dois contextos, com o objetivo de trazer ao texto clareza e detalhamento: (1) fora e (2) dentro da estrutura empresarial.
1) Fora da estrutura empresarial
A redação original do Código Civil de 2002 (CC|02) não acompanha a evolução sócio-familiar: as regras sucessórias não refletem a tendência despatrimonializadora2 da CRFB|88 nem acolhem a diversidade de formas de família hoje existentes na sociedade.
A partir desse contexto, o Planejamento Sucessório se torna um instrumento útil para realizar o papel que a lei não pôde, até o momento, cumprir3. Enquanto o Direito legislado olha para o passado, o Planejamento Sucessório pode olhar para o que é e para o que pode ser, estabelecendo aquilo que se quer que seja. A pergunta que fica é: como o advogado, ciente disso, atuará?
Bem, o Direito vai além do Direito legislado. Para que se realize o Planejamento Sucessório, o advogado olhará, sim, para as regras sucessórias do CC|02, mas com o auxílio da hermenêutica, da evolução doutrinária e jurisprudencial, dos institutos jurídicos privados surgidos após a CC|02, enfim, o advogado realiza uma planificação em conformidade com o Direito vigente, e não apenas com o Direito legislado, no caso, o CC|02. É um trabalho no qual atua com as competências de um artesão: observa, pesquisa, sente, desenha, estrutura, detalha.
Para alcançar as finalidades do Planejamento Sucessório vários instrumentos jurídicos estão disponíveis. Talvez o testamento seja o primeiro a vir à mente, mas, na verdade, podemos ir, por exemplo, desde a escolha do regime de bens do casamento, com a redação, se for o caso, de um pacto antenupcial completo e personalizado; até a criação de holdings e offshores.
Com tantas possibilidades, o diálogo se torna fundamental para selecionar o que é cabível e mais eficiente para o caso. A partir da visão de contextos, papéis, posições, relações, necessidades, sentimentos, o autor da herança, com a facilitação do advogado, tem a oportunidade de exercício do poder de escolha e de preservação das estruturas familiar e patrimonial.
2) Dentro da estrutura empresarial
No Brasil, um número expressivo de empresas é enquadrada como “familiar”. Segundo o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE), as empresas de perfil familiar têm como principal característica “(...) a propriedade e gestão nas mãos de dois ou mais membros da mesma família, não descartando a participação também em atividades operacionais” e, em 2016, representavam mais de 90% (noventa por cento) dos negócios no Brasil4.
GLADSTON MAMEDE e EDUARDA COTTA MAMEDE afirmam que o conceito jurídico de “empresa familiar” não é pacífico.
Há o enfoque “objetivo”, delimitando-se o conceito a partir de critérios específicos, como titularidade de ações e quotas por membros da mesma família, desde a criação ou por aquisição posterior; ou transmissão da titularidade do controle acionário para gerações seguintes.
O enfoque “subjetivo” dá ampla extensão ao conceito, pois se enquadrariam como empresa familiar aquela que “(...) o titular ou titulares do controle acionário entendem como tal”5. Desde empresas nacionalmente conhecidas até pequenos negócios interioranos podem se encaixar no conceito. O espectro demanda, portanto, atenção: a movimentação da economia interna está intimamente relacionada às atividades empresariais familiares.
Em 2019, grupo de trabalho formado pela PwC6 e pelo IBGC7 pesquisou a realidade das empresas familiares brasileiras. No tópico sobre sucessões foi constatado que 72,4% (setenta e dois vírgula quatro por cento) das empresas familiares brasileiras não têm plano de sucessão para os cargos centrais8.
O percentual cai para 40% (quarenta por cento) no caso de empresas com faturamento superior a 400 (quatrocentos) milhões9, ficando claro que as empresas com maior faturamento têm maior preocupação com o Planejamento Sucessório. Porém, seria o faturamento o critério essencial para essa escolha?
As empresas familiares devem se atentar ao Planejamento Sucessório como instrumento de perpetuação da atividade econômica através das gerações, principalmente ante a consciência de que eventuais conflitos pertinentes à família farão parte do ambiente cotidiano.
ROBERTA NIOAC PRADO observa que, no seio das empresas familiares, está presente um trinômio cujas intersecções são potencializadoras de situações conflitivas: família, gestão e propriedade. A intersecção desses três elementos carrega consigo a possibilidade de que ocorram conflitos “(...) entre os interesses da família (fundadores e sucessores), de seus administradores profissionais e dos caminhos da própria empresa (envolvendo demais acionistas, stakeholders e o próprio mercado)”10.
A pesquisadora completa que, “(...) o papel dos agregados da família fundadora tem especial relevância para as empresas familiares e sua harmonia”11, de modo que é necessário olhar para aqueles que ainda se tornarão membro da família, através do casamento ou da união estável.
É, de fato, uma rede infinita de posições e de relacionamentos: familiares administradores, familiares acionistas ou quotistas, familiares agregados, familiares steakholders; além de administradores, acionistas ou quotistas e steakholders que não sejam familiares; bem como o mercado por si, no qual reverberam as decisões empresariais – e essa reverberação é refletida sobre os rumos da empresa.
Para ilustrar os potenciais conflitos no âmbito de tantas relações, ALESSANDRA FACHADA BONILHA e ANA LUIZA ISOLDI mencionam alguns mais comuns, ora parafraseados: (I) confusão entre os papéis que se exerce na família e se deve exercer na empresa, (II) confusão entre patrimônio dos familiares e da empresa, (III) mudança de gerações, com alteração da gestão e do detentor do poder diretivo, (IV) disputa por reconhecimento e poder, (V) quebra dos acordos familiares, (VI) percepção de injustiças, como a proteção de membros com menor capacidade financeira, (VII) sonho pessoal que não envolve trabalhar na empresa familiar12.
A soma de empresa e família traz uma ótica mais ampla ao Planejamento Sucessório, dada a sucessão do autor da herança no contexto da empresa. A empresa está englobada no patrimônio do autor da herança, mas tem personalidade própria, e continuará existindo a despeito do fim da vida de quem a titulariza.
ROBERTA NIOAC PRADO traz a governança familiar como componente da governança corporativa, esclarecendo que ignorar os conflitos familiares pode “(...) influir negativamente no desempenho operacional da empresa de médio e longo prazo, inclusive levando-as ao estado falimentar, além de prejudicarem sobremaneira as relações familiares”13.
Perceber e aceitar que “é comum uma disputa muito grande por valores emocionais e intangíveis, que ultrapassa as fronteiras do patrimônio e o racional”14 é fundamental para a gestão próspera da empresa. Porém, como alinhar razão e emoção? Como trabalhar com necessidades de diferentes vertentes – pessoais, familiares, empresariais – e sentimentos humanos? Qual o papel do advogado nisso? O que a percepção sistêmica pode agregar nesse papel?
Além da hipótese de empresa familiar preexistente, pode ser que não seja o caso de autor da herança ser empresário, contando, a despeito disso, com patrimônio vultoso – independentemente do critério idade. Em tal situação, é possível pensar na criação de empresas a título de gestão e tutela tanto do patrimônio quanto da família. O diálogo também precisa ser minudente, a princípio, com o autor da herança, para que se conheça o que ele pretende com o Planejamento Sucessório, elegendo-se a melhor estratégia para o caso.
O ARTIGO TEM 3 PARTES.
AO FINAL DE CADA UMA DELAS, A RESPECTIVA REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA.
2 Despatrimonilização é, basicamente, o foco na pessoa natural, mais do que no patrimônio – crédito e débitos – como um fim em si mesmo. A pessoa natural está em primeiro plano quanto ao patrimônio a ela relacionado; é mais importante que ele.
3 Nesse sentido, DANIELE CHAVES TEIXEIRA citou GISELDA HIRONAKA: O Código Civil de 2002, no que concerne ao Direito Sucessório, tem como base uma família que não corresponde ao perfil das famílias da atual sociedade brasileira; pode-se entender que o planejamento sucessório é a consequência maior do fenômeno da pluralidade familiar da sociedade (HIRONAKA, 2014, p. 6). TEIXEIRA, DANIELE CHAVES. Notas sobre planejamento sucessório. P. 491. Direito civil contemporâneo [Recurso eletrônico on-line]. Organização CONPEDI/UFS. Coordenadores: Elcio Nacur Rezende, Otávio Luiz Rodrigues Junior, José Sebastião de Oliveira. Florianópolis: CONPEDI, 2015.
4 SEBRAE|PE. Os desafios da empresa familiar: gestão e sucessão. 19 dez 2016. Disponível em <http://www.sebrae.com.br/sites/PortalSebrae/ufs/pe/artigos/os-desafios-da-empresa-familiar-gestao-e-sucessao,fae9eabb60719510VgnVCM1000004c00210aRCRD>. Acesso em 20 dez 2019.
5 MAMEDE, Eduarda Cotta; MAMEDE, Gladston. Holding familiar e suas vantagens: planejamento jurídico e econômico do patrimônio e da sucessão familiar. 11 ed. São Paulo: Atlas, 2019. P. 202.
6 A PwC (PricewaterhouseCoopers) é uma multinacional prestadora de serviços em auditoria e asseguração, consultoria tributária e societária, consultoria de negócios e assessoria em transações. Possui firma membro do network no Brasil, a PricewaterhouseCoopers Brasil Ltda.
7 O IBGC (Instituto Brasileiro de Governança Corporativa) é uma sociedade civil de âmbito nacional, sem fins lucrativos, constituída em 1995, com o objetivo central de promover a governança corporativa no Brasil.
8 IBGC. Governança em empresas familiares: evidências brasileiras. Instituto Brasileiro de Governança Corporativa. São Paulo: IBGC, 2019. P 41.
9 IBGC. Governança em empresas familiares: evidências brasileiras. Instituto Brasileiro de Governança Corporativa. São Paulo: IBGC, 2019. P 42.
10 PRADO, Roberta Nioac. Coletânea de entrevistas: principais problemas a serem equacionados em uma empresa familiar | família empresária e principais dificuldades para a equação dos problemas e acomodação de interesses. P. 113-114. In Aspectos relevantes da empresa familiar e da família empresária: governança e planejamento patrimonial sucessório. Roberta Nioac Prado (Coord.). 2 ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.
11 PRADO, Roberta Nioac. Coletânea de entrevistas: principais problemas a serem equacionados em uma empresa familiar | família empresária e principais dificuldades para a equação dos problemas e acomodação de interesses. P. 114. In Aspectos relevantes da empresa familiar e da família empresária: governança e planejamento patrimonial sucessório. Roberta Nioac Prado (Coord.). 2 ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.
12 BONILHA, Alessandra Fachada; ISOLDI, Ana Luiza. Mediação em empresas familiares: mecanismo eficaz para a gestão de impasses. P. 257-258. In Aspectos relevantes da empresa familiar e da família empresária: governança e planejamento patrimonial sucessório. Roberta Nioac Prado (Coord.). 2 ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.
13 PRADO, Roberta Nioac. Coletânea de entrevistas: principais problemas a serem equacionados em uma empresa familiar | família empresária e principais dificuldades para a equação dos problemas e acomodação de interesses. P. 28. In Aspectos relevantes da empresa familiar e da família empresária: governança e planejamento patrimonial sucessório. Roberta Nioac Prado (Coord.). 2 ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.
14 PRADO, Roberta Nioac. Coletânea de entrevistas: principais problemas a serem equacionados em uma empresa familiar | família empresária e principais dificuldades para a equação dos problemas e acomodação de interesses. P. 28-29. In Aspectos relevantes da empresa familiar e da família empresária: governança e planejamento patrimonial sucessório. Roberta Nioac Prado (Coord.). 2 ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.