Desconsideração da personalidade jurídica - Inovações
- Criado em 09/01/2020 Por Eduardo Scalon
A desconsideração da personalidade jurídica tem se aperfeiçoado no Brasil, sendo que uma grande alteração ocorreu quando da promulgação do novo código de processo civil em 2015. Todavia, essa alteração limitou-se ao aspecto procedimental, criando regras processuais para a análise e julgamento dos pedidos de desconsideração.
Entretanto, ainda subsistia grande variação de entendimentos na jurisprudência sobre suas hipóteses de cabimento. Essa instabilidade representava um risco para o exercício de atividades empresariais.
A Lei 13.847/2019, que trata dos direitos de liberdade econômica trouxe duas importantes modificações no Código Civil, que trata do tema.
A primeira alteração foi a criação do artigo 49-A, que estabelece a autonomia dos patrimônios da pessoa jurídica e de seus sócios, associados, instituidores ou administradores. O texto está assim redigido:
- Art. 49-A. A pessoa jurídica não se confunde com os seus sócios, associados,instituidores ou administradores.
- Parágrafo único. A autonomia patrimonial das pessoas jurídicas é um instrumento lícito de alocação e segregação de riscos, estabelecido pela lei com a finalidade de estimular empreendimentos, para a geração de empregos, tributo, renda e inovação em benefício de todos.”
Em princípio essa previsão não seria necessária, pois esse conceito já existia no Direito Comercial. Mas o legislador optou, para não deixar margem de dúvida, por especificar claramente a distinção entre os patrimônios no artigo que antecede a previsão da possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica.
Dessa forma, o conceito além de claro e expresso, se encontra no mesmo diploma legal que trata da exceção dessa distinção dos patrimônios.
Essa facilitação no entendimento da matéria foi trazida justamente pela Lei que visa aprimorar a iniciativa privada no Brasil e o melhor e maior desenvolvimento das atividades comerciais e econômicas.
A escolha da forma de organização da atividade econômica é uma liberdade conferida aos particulares, para que possam utilizar a melhor forma possível para atingir seus objetivos.
Uma vez estabelecida a autonomia patrimonial, modificou-se o artigo 50 que trata das hipóteses de desconsideração da personalidade jurídica.
Essa alteração acrescentou parágrafos ao artigo 50 do Código Civil, para especificar as hipóteses da desconsideração da personalidade jurídica. De acordo com a redação do artigo, a desconsideração poderá ser pedida quando evidenciar-se o abuso da personalidade jurídica.
Abuso esse que decorre do desvio de finalidade ou da confusão patrimonial. Vide redação do artigo:
- Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.
Mas a interpretação do que seria o desvio de finalidade ou confusão patrimonial anteriormente cabia ao juiz a quem o pedido de desconsideração era endereçado. Neste ponto, a diversidade de interpretações minava o conceito de separação patrimonial e significava um risco ao exercício de atividades empresariais, risco esse sem qualquer relação com o negócio desenvolvido.
A inclusão dos parágrafos visa o esclarecimento dessas questões, com a seguinte redação:
- § 1º Para os fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza.
O primeiro parágrafo do artigo 50 traz a definição de desvio de finalidade, para fins de permitir a desconsideração da personalidade jurídica.
Agora a determinação de desvio de finalidade não é mais construção e entendimento do juiz da causa, mas uma específica definição na lei.
Existem 2 hipóteses para o desvio de finalidade, sendo o primeiro a utilização da pessoa jurídica com propósito de lesar credores. A redação é clara ao estabelecer a hipótese para os casos em que a finalidade da pessoa jurídica é a lesão a credores.
Situação muito distinta da mera existência de credores ou da impossibilidade do pagamento das obrigações. A pessoa jurídica precisa ser utilizada para fins distintos dos negócios previstos em seu objeto social, transformando-se em mero instrumento para causar prejuízos.
Uma vez que o propósito da pessoa jurídica não é a prática de negócios, a proteção legal da separação dos patrimônios não deverá se manter.
A outra hipótese é a prática de atos ilícitos de qualquer natureza. Aqui se ampliou as possibilidades de indevida utilização da pessoa jurídica, enquanto na primeira hipótese tinha-se uma previsão específica de prejuízo a credores, neste pode-se incluir qualquer outro ilícito.
Todavia, da mesma maneira, não se trata da eventual prática de um ato ilícito, mas da utilização da pessoa jurídica para a prática de atos ilícitos, do desvio de sua finalidade precípua de prática de atos comerciais e mercantis.
O parágrafo segundo visa especificar o conceito de confusão patrimonial para fins de aplicação da lei, que não se trata da confusão prevista no art 381 do Código Civil.
- § 2º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por:
Seguindo a linha lógica das alterações, o parágrafo segundo estabelece a confusão patrimonial como ausência de separação de fato entre os patrimônio da pessoa jurídica e de seus sócios, associados, instituidores ou administradores.
A pessoa jurídica deve ser um ente separado e dedicado a atividades diversas daquelas praticadas pelos seus constituintes. Os incisos do parágrafo segundo, trazem a definição dos fatos que devem ser considerados como ausência de separação de fato.
O inciso primeiro trata do pagamento de obrigações dos sócios ou administradores pela sociedade ou obrigações da sociedade pagas pelos sócios ou administradores.
- I - cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa;
Se a sociedade realizar pagamentos de despesas pessoais de seus sócios ou administradores, resta evidenciada a confusão, pois suas receitas devem ser utilizadas para pagamento de suas obrigações com credores, fornecedores, impostos e quaisquer outras inerentes à sua atividade.
A mesma interpretação será dada quando os sócios ou administradores, arcarem diretamente com obrigações da sociedade.
O inciso II trata de transferência de ativos ou passivos entre os sócios e a pessoa jurídica.
- II - transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante; e
Na hipótese de bens ou fundos assim como débitos serem transferidos, sem que haja qualquer forma de contraprestação, estará configurada a confusão, pois a operação não foi realizada na forma de um negócio, mas apenas como forma de transferência de localização dos ativos ou passivos.
- III - outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial.
Por fim, o inciso III trata de hipóteses não previstas na lei, mas que ofendem a autonomia patrimonial da pessoa jurídica e sua separação da esfera de patrimônio de seus constituintes. A lei não tem condições de tratar de todas as possibilidades fáticas de confusão patrimonial, dessa forma optou-se por especificar alguns casos e manter uma previsão genérica residual, para abarcar outras possibilidades.
A alteração legislativa também trouxe uma relevante modificação sobre uma questão frequentemente mal interpretada por juízes.
Magistrados, muitas vezes, não têm conhecimento sobre práticas de negócios ou como empresas podem ser organizar para praticar seus objetivos comerciais. Como consequência, reconhecia-se a existência de um grupo econômico, cuja personalidade jurídica era desconsiderada.
Por esse motivo, incluiu-se a previsão de que a mera existência de grupo econômico não autoriza a desconsideração da personalidade jurídica, pois é indispensável a presença dos elementos que tratam da confusão patrimonial.
Podemos definir grupo econômico como empresas que combinam recursos, esforços ou exerçam atividades comuns. A definição em Direito Comercial demanda que essa união de esforços seja devidamente aprovada e registrada em atas e contratos, mas frequentemente esse requisito é abrandado pelos juízes para o reconhecimento do grupo, pois o grupo econômico pode ser de fato e não de direito.
A simples existência de sócios em comum, já foi suficiente para o reconhecimento da existência de grupo econômico.
O legislador optou por não adentrar na questão do reconhecimento do grupo de econômico ou seus requisitos, haja vista se tratar de questão ao alvedrio de cada magistrado na análise dos casos específicos, mas apenas exigir a presença dos elementos de confusão patrimonial para autorizar a desconsideração da personalidade jurídica.
- § 4º A mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de que trata o caput deste artigo não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica.
- § 5º Não constitui desvio de finalidade a mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica.
No mesmo sentido, qualquer alteração ou expansão na finalidade da atividade econômica da pessoa jurídica, desacompanhada da confusão patrimonial, não é motivo para a desconsideração.
Portanto, as alterações nas regras da desconsideração da personalidade jurídica vieram descritas no mesmo sentido da lei que instituiu a declaração de direitos da liberdade econômica.
Atualmente existem diversas formas de organização entre pessoas e empresas para a consecução de seus objetivos, sem que isso signifique ilegalidade ou prejuízo a terceiros.
Uma vez estabelecida a autonomia patrimonial entre empresas e seus sócios, constituintes e administradores, a desconsideração somente poderá ser admitida nas hipóteses em que essa separação deixar de existir.
Formas de organização incomuns ou complexas podem e devem existir como forma de incentivo ao empreendedorismo e atividades comerciais, sendo vedado apenas a indevida utilização de tais expedientes.