A COMPRA E VENDA INTERNACIONAL DE MERCADORIAS (CISG) E A COMPATIBILIDADE COM O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
- Criado em 15/03/2018 Por Nathielle Rodrigues da Rosa
O Direito da compra e venda internacional é considerado um dos mais prósperos a uma harmonização de caráter universal, visto que, cada contrato poderia ser regido por uma lei interna diferente, ainda que se utilizem as mesmas regras conflituais.[1]
A CISG “nasce” para tentar unificar a legislação que rege o comércio internacional, buscando substituir uma lei de vendas para os muitos e diversos sistemas jurídicos nacionais que existem no campo das vendas[2]. E, justamente por isto, surge esta necessidade de um Direito da compra e venda unificada, em virtude do Direito ser territorial por natureza, aplicável, a princípio, apenas dentro dos limites territoriais do Estado em que está em vigor[3].
Neste sentido, Rodrigo Luz leciona que “cada país possui suas próprias normas relativas aos contratos de compra e venda e, por isso, é natural que surjam dúvidas acerca da lei aplicável aos contratos internacionais”[4].
Esta intenção de unificar as regras foi motivada, sobretudo, pela ideia de retomar a noção de Lex mercatoria prevalente na Idade Média, partindo-se da premissa que Lex mercatoria, “é uma criação dos tribunais de comércio medievais, destinada a dirimir extrajudicialmente os conflitos jurídicos relacionados ao exercício do comércio (...)”.[5]
Imperioso então, entender, primordialmente, os primeiros esforços de criação de um Direito unitário da compra e venda. Referidos esforços iniciaram-se em 1928, quando o presidente Ernst Rabel, do então recém-criado Instituto Internacional para Unificação do Direito (UNIDROIT), propôs a unificação do Direito nos contratos transnacionais. Com árduo trabalho, após alguns anos, seguiu-se a aprovação, em 1964, na Conferência de Haia, da Convenção para uma Lei Uniforme relativa à Compra e Venda Internacional (ULIS) e da Convenção para uma Lei Uniforme sobre a Formação dos Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias (ULF). Entretanto, referidas convenções não tiveram a recepção e repercussão esperada, tendo sido ratificadas por apenas nove Estados.
Apenas dois anos após o “fracasso” das Convenções supracitadas, foi fundada pela Assembléia Geral, a UNCITRAL – United Nations Comission on International Trade Law ou em português, Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional, cujo motivo para criação, conforme leciona Rodrigo Luz:
(...) se baseou na afirmação de que “as disparidades nas leis nacionais sobre o comércio exterior criaram obstáculos para o fluxo do comércio mundial. Com o trabalho da Comissão, a ONU passaria a ter “um papel mais ativo na redução ou eliminação de tais obstáculos”. Foi então delegada à UNCITRAL a função de promover a progressiva harmonização e unificação das leis de comércio internacional”.
Em outras palavras, a Assembléia Geral das Nações Unidas reconheceu que a existência de diferenças entre Direitos nacionais no âmbito da regulação do comércio internacional gerava obstáculos para circulação de mercadorias, de modo que a tarefa principal da UNCITRAL tornar-se-ia a minimização ou remoção de tais obstáculos.
É neste contexto que surge, em 1980, a Convenção de Viena sobre Compra e Venda Internacional de Mercadorias (CISG) que entrou em vigor, inicialmente, em 1° de janeiro de 1988, em relação aos estados que já a haviam ratificado até então.[6]
A elaboração da CISG teve representação de 62 países, desenvolvidos e em vias de desenvolvimento, sendo que o Brasil, ainda que tenha ratificado a Convenção apenas em 2012, teve participação ativa nos trabalhos de discussão e construção do texto convencional, representado pelo Sr. Franchini Netto, ministro de Primeira Classe para Assuntos Comerciais do Ministério das Relações Exteriores, embaixador e consultor jurídico do Ministério das Relações Exteriores. Portanto, “o Brasil participou ativa e diretamente não só da elaboração da CISG, mas também dos estudos e análises dos instrumentos normativos anteriores”[7] para que a Convenção seguisse os mesmos objetivos, qual seja, busca pela progressiva harmonização e unificação do direito do comércio internacional.
No entanto, durante a elaboração da Convenção, seus redatores encontraram obstáculos para se chegar a um consenso em diversas matérias, decorrentes de divergências ideológicas, econômicas e jurídicas. Por esta razão, o texto internacional flexibiliza a sua regulamentação, deixando lacunas, no sentido de termos vagos, para que fique a cargo do juiz certa liberdade de apreciação[8] com o objetivo de evitar que Estados, por incompatibilidade com seu ordenamento jurídico, deixassem de ratificar e, ao mesmo tempo, criar um método de interpretação uniforme que permitiria o preenchimento de tais lacunas no decorrer da aplicação e da vigência da convenção.
Não obstante, o magistrado sempre deverá buscar uma interpretação uniforme, a fim de evitar que a mesma Convenção passe a ser entendida de forma diferente em diferentes países (já que isso iria, aos poucos, provocar regras distintas nos Estados), pois não basta apenas a ratificação da Convenção. É igualmente importante que as suas disposições sejam interpretadas de maneira uniforme nos vários países e uma das principais causas do sucesso da CISG deve-se a isto: o cuidado na determinação de seus parâmetros interpretativos.[9]
Nesta seara, FELEMEGAS aduz que:
The benefits of a uniform law for the international sale of goods are indeed many and substantial, and not merely of pecuniary nature. A uniform law would provide parties with greater certainty as to their potential rights and obligations. This is to be compared with the results brought about by the amorphous principles of private international law and the possible application of an unfamiliar system of foreign domestic law.
Another advantage of a uniform law of international sales of goods is that it would serve to simplify international sales transactions and thus, as envisaged in the Preamble, "contribute to the removal of legal barriers in international trade and promote the development of international trade". The CISG seeks to achieve such uniformity. Whether or not the uniform law is successful will largely depend on two things: first, whether domestic tribunals interpret its provisions in a uniform manner and, secondly, whether those same tribunals adopt a uniform approach to the filling of gaps in the law.[10]
Dessa forma, caberá explanar, em momento oportuno, como é a integração da Convenção ao Ordenamento Jurídico Brasileiro, definindo-se, em linhas gerais, sua esfera de aplicação, uma vez que já de adianto, a CISG está construída sobre princípios muito compatíveis com aqueles que fundamentam nossas relações jurídicas no âmbito do contrato de compra e venda civil/comercial.[11]
De tal maneira que, ainda que a Convenção de Viena contenha termos pouco familiares ao jurista brasileiro, não há nada em contrário ao nosso direito pátrio.[12] A partir, dessa ideia de base é que o presente projeto de pesquisa irá seguir, buscando focar na parte de compatibilidade entre a Convenção e o ordenamento jurídico Brasileiro, estando tal ponto estritamente ligado as formas de interpretação e aplicação do texto internacional.
[1] DOLGANOVA, Ioulia; LORENZEN, Marcelo Boff. O Brasil e a adesão à Convenção de Viena de 1980 sobre compra e venda internacional de mercadorias. Revista Fórum Cesa, Belo Horizonte, v. 4, n. 10, p. 46-61, jan./mar. 2009.
[2] Tradução livre do texto original: “Thus, the CISG attempts to unify the law governing international commerce, seeking to substitute one sales law for the many and diverse national legal systems that exist in the field of sales”. FELEMEGAS, John. Interpretations of the United Nations Convention on Contracts for the International Sale of Goods (1980) as Uniform Sales Law”, Cambridge University Press (2006). Disponível em: <http://www.cisg.law.pace.edu/cisg/biblio/felemegas14.html>. Acesso em 12/11/2014.
[3] DOLGANOVA, Ioulia; LORENZEN, Marcelo Boff. O Brasil e a adesão à Convenção de Viena de 1980 sobre compra e venda internacional de mercadorias. Revista Fórum Cesa, Belo Horizonte, v. 4, n. 10, p. 46-61, jan./mar. 2009.
[4] LUZ, Rodrigo. Comércio Internacional e legislação aduaneira / 5. Ed. – Rio de Janeiro: Elsevier, 2012. Pg. 372
[5] FRADERA, Véra Jacob de, MOSER, Luiz Gustavo Meira. A compra e venda internacional de mercadorias: estudos sobre a Convenção de Viena de 1980 – São Paulo: Atlas, 2011, pg. 3
[6] DOLGANOVA, Ioulia; LORENZEN, Marcelo Boff. O Brasil e a adesão à Convenção de Viena de 1980 sobre compra e venda internacional de mercadorias. Revista Fórum Cesa, Belo Horizonte, v. 4, n. 10, p. 46-61, jan./mar. 2009
[7] NETO, Alberto de Campos Cordeiro; RADAEL, Gisely Moura; LOPES, Luiz Felipe Calábria - O Brasil e a Ratificação da Convenção de Viena sobre Compra e Venda Internacional de Mercadorias (CISG): Vantagens e Desvantagens.
Disponível em: < http://cisgbrasil.dominiotemporario.com/doutrina>. Acesso em 12/11/14.
[8] PIGNATTA, Francisco Augusto. As novas regras da compra e venda internacional de mercadorias – A Convenção de Viena de 1980: uma visão de conjunto. Revista Bonjuris, Curitiba, n. 603, p. 7, fev. 2014.
[9] NETO, Alberto de Campos Cordeiro; RADAEL, Gisely Moura; LOPES, Luiz Felipe Calábria - O Brasil e a Ratificação da Convenção de Viena sobre Compra e Venda Internacional de Mercadorias (CISG): Vantagens e Desvantagens – pg. 9. Disponível em: < http://cisgbrasil.dominiotemporario.com/doutrina>. Acesso em 12/11/14.
[10] Tradução livre: Os benefícios de uma lei uniforme para a venda internacional de mercadorias são realmente muitos e substanciais, e não apenas de natureza pecuniária. A lei uniforme daria partidos com maior segurança quanto aos seus direitos e obrigações potenciais. Isso é para ser comparado com os resultados trazidos pelos princípios amorfas de direito internacional privado e a possível aplicação de um sistema desconhecido de direito interno estrangeiro. Outra vantagem de uma lei uniforme das vendas internacionais de bens é que ele serviria para simplificar as operações de vendas internacionais e, portanto, tal como previsto no preâmbulo, "contribuir para a eliminação dos obstáculos jurídicos no comércio internacional e promover o desenvolvimento de comércio internacional". A CISG visa alcançar essa uniformidade, quer ou não, a lei uniforme e o seu sucesso dependerá em grande parte de duas coisas:. em primeiro lugar, se os tribunais nacionais interpretar as suas disposições de modo uniforme e, por outro, se esses mesmos tribunais adotar uma abordagem uniforme para o preenchimento de lacunas na lei. FELEMEGAS, John. Interpretations of the United Nations Convention on Contracts for the International Sale of Goods (1980) as Uniform Sales Law”, Cambridge University Press (2006).
Disponível em: <http://www.cisg.law.pace.edu/cisg/biblio/felemegas14.html>. Acesso em 12/11/2014.
[11] NETO, Alberto de Campos Cordeiro; RADAEL, Gisely Moura; LOPES, Luiz Felipe Calábria - O Brasil e a Ratificação da Convenção de Viena sobre Compra e Venda Internacional de Mercadorias (CISG): Vantagens e Desvantagens – pg. 15.
Disponível em: < http://cisgbrasil.dominiotemporario.com/doutrina>. Acesso em 12/11/14.
[12] PIGNATTA, Francisco Augusto. As novas regras da compra e venda internacional de mercadorias – A Convenção de Viena de 1980: uma visão de conjunto. Revista Bonjuris, Curitiba, n. 603, p. 7, fev. 2014.
Dessa forma, em outubro de 2012, foi ratificado, pelo Brasil, através do Decreto Legislativo n° 538/12[1], a aprovação do texto internacional da Convenção das Nações Unidas sobre Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias, estabelecida em Viena, em 11 de abril de 1980, no âmbito da Comissão das Nações Unidas para o Direito Mercantil Internacional. Após dois anos da referida ratificação, no último dia 17 de outubro, foi publicado o Decreto n° 8.327[2], que representa a promulgação, no Brasil, da Convenção, comumente conhecida como “CISG”.
Agora, as partes brasileiras, de fato, terão à disposição uma nova base legal para estruturar seus negócios de compra e venda de mercadorias com partes estrangeiras.
A Convenção surge no contexto de crítica ao sistema de ‘conflito de leis’, visto que ainda que esteja consagrado na LINDB em seu artigo 9° o princípio da “lex loci celebrationis”, isto é, aplicação da lei do país em que o contrato foi celebrado[3], a realidade é que o regime de conflito de leis, ao aplicar a lei de um país ou a lei de outro país, carrega consigo certas dificuldades, quais sejam: a) a lei aplicável (seja a de um, seja a de outro país) é uma lei interna, destinada a regular questões internas do país e, por isso, acaba sendo ineficiente para enfrentar problemas no âmbito internacional; b) e em razão de cada país ter uma lei, os comerciantes precisavam ter ciência do conteúdo da lei do país onde o contrato havia sido assinado, o que dificulta ao comerciante organizar suas práticas conforme as leis de diversos países.
Dessa forma, a convenção vem como uma “lei” de essência internacional e que realmente foca em problemas da prática internacional; e, além disso, ela procurou ser uma lei única, a fim de padronizar a regulamentação acerca de todos os contratos de compra-venda internacionais, tornando apenas ela a lei aplicável.
Importante ressaltar que, no processo de formação da Convenção, procurou-se levar em conta os diferentes tipos de sistemas legais, econômicos e sociais. De tal sorte, que a sua formação destinava-se a esta referida unificação das regras regentes de compra e venda internacional de mercadorias, buscando, enfim, a superação das divergências que obstaculizavam o desenvolvimento do comércio exterior.
Ademais, estas buscas pela progressiva harmonização e unificação do direito do comércio internacional são primordialmente tratadas no preâmbulo da CISG[4]. Diz o referido preâmbulo:
Os Estados Partes na presente Convenção,
Tendo em conta os objetivos gerais inscritos nas resoluções relativas à instauração de uma nova ordem econômica internacional adotadas pela Assembleia Geral das Nações Unidas em sua sessão extraordinária;
Considerando que o desenvolvimento do comércio internacional com base na igualdade e em vantagens mútuas constitui elemento importante na promoção de relações de amizade entre os Estados;
Estimando que a adoção de regras uniformes para reger os contratos de compra e venda internacional de mercadorias, que contemplem os diferentes sistemas sociais, econômicos e jurídicos, contribuirá para a eliminação de obstáculos jurídicos às trocas internacionais e promoverá o desenvolvimento do comércio internacional.
Acordam o seguinte (…)
Assim, não há dúvidas acerca da representatividade da Convenção no âmbito do comércio internacional, pois esta amplia e promove maior segurança jurídica e previsibilidade acerca de qual direito é aplicável na relação jurídica.
Superada a questão inegável do aumento da segurança jurídica nas relações de compra-venda internacional e considerando a atualidade da matéria, cabe, como já referido, a análise, a priori, da adequação do texto da CISG à realidade brasileira, de maneira que possa posteriormente se elucidar como será a integração da Convenção ao Ordenamento Jurídico Brasileiro.
Referida integração, encaixa-se no sentido da importância de descobrir como os institutos jurídicos presentes na Convenção serão recepcionados no Brasil e, ao analisar as diferenças pontuais em relação à disciplina desses institutos, se será possível perceber quais medidas e soluções poderão ser aplicadas nos pontos de conflitos entre a Convenção e nosso direito pátrio, como por exemplo, por meio da interpretação e do princípio da boa-fé objetiva.
Neste sentido, explanar os princípios informadores da CISG e o ordenamento interno brasileiro mostra-se essencial, no intuito de verificar a compatibilidade entre eles, de forma a perceber qualquer incompatibilidade sistêmica ou contrariedade a ordem pública brasileira.
Pondera-se que a relevância da Convenção vai muito além do que se imagina, de tal sorte que a mesma pode ser vista como uma ferramenta de modernização do direito nacional, pois com a promulgação da CISG, representará, para o Brasil, um enorme avanço em termos de positivação de regras no âmbito do direito dos contratos.
Por fim, em um mundo em que as relações entre as nações se intensificam cada vez mais, não se pode permitir que conflitos de leis e jurisdições se resolvam, em cada país, sem preocupação por aquilo que é decidido em outro, sendo atacados, desse modo, o comércio e as relações internacionais. Por isso, a importância da CISG, pois trata-se mais do que unificar as regras de conflito de leis, é um consenso sobre as próprias regras que regem determinada relação jurídica
[1] Através da promulgação do Decreto Legislativo n° 538, de 18 de outubro de 2012. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decleg/2012/decretolegislativo-538-18-outubro-2012-774414-convencao-137911-pl.html>. Acesso em 11/11/2014.
[2] Decreto n° 8327, publicado em 17 de outubro de 2014. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2014/Decreto/D8327.htm>. Acesso em: 13/11/2014.
[3] LUZ, Rodrigo. Comércio Internacional e legislação aduaneira / 5. Ed. – Rio de Janeiro: Elsevier, 2012. Pg. 373
[4] CONVENÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE CONTRATOS DE COMPRA E VENDA INTERNACIONAL DE MERCADORIAS© tradução de Eduardo Grebler e Gisely Radael. Disponível em: <http://cisgbrasil.dominiotemporario.com/doc/egrebler2.pdf.>. Acesso em: 13/11/2014.
Tamyris Michele Padilha
AdvogadoBruno Manfro
Advogado